Final

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* 5 *

De longe, logo podemos avistar o pequeno riacho que lindamente dividia uma clareira ao meio.

Assim que nos aproximemos a ponto de tocar com os dedos as águas frescas e cristalinas do rio, um som me fez desejar nunca ter nascido. Como tacos de madeira sendo batidos, os pequenos estouros sincronizados trouxeram novamente à tona as palavras de Geraldo.

— Esse som não é de nenhum animal... — afirmei.

— Não seja marica, Pietro! — Disse Zé, me olhando com desdém.

Mais sete batidas foram ouvidas mata a dentro. Naquele momento, por mais que fossem corajosos, ninguém ousou abrir a boca; estavam atentos esperando os novos sons. E estes logo vieram; cinco batidas. Todas mais próximas de nós, e mais distantes uma da outra:

— Eles vos farejaram! — Afirmou o velho. — Subam nas arvores, vão, rápido crianças, rápido. Não quero que aconteça com vocês o mesmo que houve com os últimos invasores.

— Porra, não pode, não pode ser, — Zé aparentava estar confuso. — Essas coisas não existem, só pode ser pegadinha.

Novos estalos de madeira, desta vez sendo emitidos bem próximos de nós, foram ouvidos, vindo em seguida, vociferações agudas de "wooop, wooop, wooop, wooop". Aquilo sim era um som humano; eu queria correr, queria sumir dali. Ao menos se Janaína concordasse comigo.

— Vocês querem continuar? — Perguntou retoricamente Geraldo.

Antes de uma resposta, um grito másculo, vindo a menos de 100 metros da nossa localização, fez a vida passar em nossos olhos, "peguem os invasores, morte aos invasores".

Pensamos em desatar os passos em uma corrida ao carro, mas Geraldo afirmou que subir em uma arvore seria o mais apropriado. Rapidamente corremos até uma colosso centenária, mas antes que Zé, que corria na frente, tocasse em sua casca, freou de brusco para não ser atingido pelo fio de uma foice que brutal clavou-se no tronco de madeira.

— Corram. — Gritou Geraldo pela ultima vez. — Salvem suas vidas.

Desta vez Zé Anderson acreditou. Eu não sabia que era tão veloz. Meu Deus, como corri. Fomos ligeiros, em menos de cinco minutos, lá estávamos no local onde antes estava a fogueira.

Ofegante sentei-me no tronco à admirar as ultimas brasas que ainda brilhavam na escuridão.

— Acabou — riu Janaína contente —, os sons pararam. Caímos nessa, não acredito.

Gabriele também caiu na graça:

— Somos muito burros — girou nos calcanhares com os braços abertos. — O velho sumiu, não percebem? Ele armou isto. Quando chegarmos ao carro, lá vai estar ele debochando porque fomos bebês cagões.

— Não — Zé estava tremendo como nunca o havia visto antes. — Eu vi... era horrível. Tinha rosto de homem, mas os dentes... era... eram de cachorro. Aquela coisa que me atacou não é humana. O Pietro tinha razão, vir aqui foi uma burrice. Precisamos fazer aquilo que o velho disse. Já é quase meia noite.

Janaína segurava firme na minha mão, foi ali que decidi de uma vez por todas, pôr minha vida na frente de um belo par de peitos; soltei sua mão e mostrando o dedo para o trio, me arrependo de ter sido tão estupido, comecei minha escalada na mais alta arvore que ali havia.

Assim que coloquei-me sentado no galho mais elevado, ouvi passos esmagando a folhagem seca à menos de 20 metros da clareira.

— É o Geraldo... — riu discretamente Janaína. — Que vergonha, Pietro, eu achava que você era homem, mas agora, te vendo encima de uma arvore, vejo que não passa de um bebezão. Tá tudo terminado entre nós!

Zé estava que não aguentava mais em pé. Mas em nome da reputação não ousava repetir aquilo que eu havia feito, mas quando bipou o alarme do seu relógio indicando ser meia noite, de todos os lados, uivos choradamente agourentos foram ouvidos. Era perturbador; um coro melancólico que me fez odiar o dia em que fui concebido.

Em menos de cinco segundos, a lua saiu de trás das nuvens, e junto dela, novos uivos bestiais; estes sim eram de lobisomens: graves e estrondantes.

Quando meu amigo ouviu aquilo, decidiu abandonar Gaby. Lá corria ele rumo à arvore onde eu estava. Meu pai do céu, se ele tivesse se adiantado um minuto... mas por "coragem"... nunca vou esquecer aquela cena: ele subia rápido como um gato, mas antes que chegasse ao galho de repouso, algo saltou sobre ele, o levando violentamente ao chão. Era uma besta bípede que apesar de mover-se com o corpo arqueado, resguardavam muitas semelhanças com o ser humano.

Lembro-me bem que, antes de ver Zé caído, a arvore tremeu. Não era meu dia de morrer, só pode ser essa a explicação. Desequilibrado, senti que iria despencar para a morte, mas com destreza continuei sentado com os pés no ar.

"Não", gritei em espirito ao ver aquela coisa peluda rasgando o corpo de Zé como manteiga diante de suas garras ensanguentadas. Vi o peito do meu melhor amigo tornar-se uma pasta de carne, enquanto um dos pés da besta mantinha-se mergulhado em sua cavidade abdominal. Somente quando o descanso lhe chegou, foi que Zé parou de implorar às garotas que a muito havia fugido, por socorro.

Gaby e Janaína correram na escuridão, mas não demorou para que o som de seus gritos ecoassem pela mata. Elas gritaram desesperadas por socorro... santo Deus, como apagarei a voz de Janaína engasgando em sangue à me chamar "Pietro, amor, venha me salvar"... e Gabriele... como chorou pedindo ao criador que nunca desamparasse sua família. Ao menos alguém teve tempo de se arrepender dos pecados.

Foi tudo breve; quando dei por mim, a besta abaixo do galho havia parado de mascar as tripas de Zé, enquanto cinco outras criaturas saiam da mata; como esperado, duas traziam arrastados os corpos das garotas que nos acompanhavam.

Elas uivaram de quatro quando uma das bestas olhou para cima; era horrenda, eu esperava um focinho canídeo, mas não, aqueles rostos, apesar de cobertos de pelo, apresentavam bocas humanas, com dentes desproporcionais, mas ainda assim, humanas.

Como aquela noite me foi longa; os lobisomens passaram a madrugada inteira uivando e saltando com suas garras na minha direção. Muitas vezes, eu sentia elas rasparem nos meus calcanhares, ou aquele bafo fétido de carniça que preenchia minhas narinas.

Se um dia alguém salvou minha vida, esse foi Geraldo. De cima da arvore, como ele me aconselhara, vi ao nascer o sol, as bestas levarem com elas os cadáveres que um dia chamei de amigos.

Esperei dar oito da manhã, só então desci da arvore, me surpreendendo ao ver um pedaço de papel verde, bem plastificado, caído ao lado dos restos da fogueira.

Curioso o apanhei para ler; era uma carteira de identidade:

— Geraldo José Martins Sallmans. — O soltei imediatamente. — Porra, não pode ser, não pode ser. Não faz sentido.

Mais uma vez temi pela minha vida. Precisava sair da floresta. Durante o dia, meu medo não foi das bestas, mas acabar me perdendo. Por sorte, logo vi o posto de gasolina e, consequentemente, o carro à sua frente estacionado.

Corri desesperado até ele, mas quando forcei a porta, esta não cedeu; todas estavam trancadas.

— Está procurando por isto? — Perguntou o velho, que enquanto saia da casa, atirou a mim as chaves do carro de Zé.

Elas resvalaram em meu peito cheio de temor e, como se em câmera lenta, despencaram ao chão.

Não queria ficar ali nem mais um segundo, mas com as mãos tremulas, por mais que tentasse, acertar a fechadura da porta era impossível, até que, desacorçoado, Geraldo tomou elas de mim e abriu a porta da salvação.

— Você sabe dirigir? — Perguntou-me. Eu assenti, pondo a chave na ignição. — Então vá, e nunca mais volte aqui. Se voltar, eu não o protegerei!

Sem mais nada dizer, pisei fundo no acelerador. Eu havia escapado, e agora, o lar era meu destino. Juro por tudo que há de mais sagrando: jamais voltarei ao Caçador ou entrarei em qualquer outra floresta.

Caro leitor, lhe imploro, nunca entre no mato sozinho ou acompanhado. Por tudo que você ama, fique no calor da cidade, pois se não o fizer, as bestas poderão surgir, então, quando o dia raiar, você desejará a morte à ter de carregar as lembranças do pesadelo, pelo resto da vida.

SH~

O lobo.Onde histórias criam vida. Descubra agora