Capítulo um

50 2 5
                                    

Um desconhecido, que atravessava a rua enevoada, o encarou e sorriu numa lentidão enjoativa. Defronte da sapataria, uma mãe puxava o filho pela gola da camisa, e em seu rosto a lágrima se destacou. Tudo em redor se resumiu em uma imagem estática. Um fragmento. As cores se desmancharam, e o cenário se tornou cinzento.

Veio a escuridão. Silhuetas se moviam entre as sombras e se transformavam em homens e mulheres, que vagavam sem destino. Eles sempre percebiam sua presença e se aproximavam, até que Lucius visse seus rostos. Nesse instante, tinha sempre a mesma lembrança:

Passaram-se mil seiscentos e quarenta e três anos, mas ainda sinto o gosto do sangue dela em minha boca. Referia-se ao sangue da vampira Luna, cria da poderosa Drucila e responsável pela sua transformação. Ela não volta. Nunca mais.

Agora os rostos dos homens e mulheres estavam tão próximos de Lucius, que ele podia sentir a respiração deles se condensando sobre sua pele fria. Uns sussurravam escárnios, outros propunham dar-lhe riquezas, que ele sabia não existirem. Assim como das outras vezes, não eram capazes de tocá-lo. Talvez esse fosse o motivo do ódio de algumas daquelas almas: a inveja que tinham do corpo de Lucius e da sua materialidade.

A multidão de espíritos parou. Estavam confusos.

– Demônio! – Gritou um dos espectros, e todos se desmancharam como se fossem feitos de fumaça.

Lucius viu um foco de luz vermelha acender e sentiu o calor acalentar sua pele. A mesma sensação que sentia quando o sol o tocava, no tempo em que era mortal... Não! Não era a mesma sensação! Era ainda melhor que o calor do sol, e isso fez com que Lucius andasse em sua direção. Num instante, a sensação de prazer foi substituída por um calor causticante, como se a luz o pudesse queimar. Num reflexo, olhou para as palmas das mãos, temendo ser transformado em pó, mas sua pele permanecia inalterada.

Ouviu um farfalhar de asas, e uma silhueta se definiu diante da luz.

Seu corpo era alto e esguio, e seus contornos sugeriam as formas dos músculos. Seu andar era altivo e gracioso. Estendeu as asas ao máximo, e Lucius pôde ver que cada uma delas era quase duas vezes maior que a altura do seu corpo.

Demônios são destituídos de matéria. Lucius pensava. E assim como os espíritos, não podem me tocar. Virou o rosto, tentando ignorá-lo, e continuou a andar. Mas quando o vermelho luminoso diminuiu em intensidade até desaparecer por completo, a misteriosa silhueta recolheu as asas e ergueu os ombros, tomando uma forma humana.

Está vindo para cá. Apressou o passo e pensou em seu quarto. Tentava se lembrar da mobília, do aspecto dos seus livros e de seus objetos pessoais, pois somente assim a luz se abriria naquele limbo como um portal de saída para casa. É sempre assim! Pensava, tentando se acalmar, mas curiosamente não se lembrava de onde viera. Por mais que tentasse fugir, não conseguia.

Assustou-se quando o homem saltou em sua direção, e suas asas se abriram. Era como se tudo acontecesse ao mesmo tempo: as garras alvejaram seu pescoço, enquanto Lucius se torcia para trás; as presas despontaram entre seus lábios, e as garras de Lucius rasparam o peito de uma criatura muito maior; o demônio deu um salto para trás, assustado, e tocou a ampla incisão aberta em seu peito.

A risada grave tomou tudo em redor.

Agora Lucius podia vê-lo com clareza: apesar dos contornos quase humanos de seu corpo, tinha a pele seca e escura, cinzenta. Seus olhos negros e brilhosos enfeitavam um rosto retorcido, cujos ossos despontavam, salientes. As duas presas superiores, imensas, eram acompanhadas por duas outras que emergiam da arcada inferior.

O Vampiro da Quinta da Boa VistaOnde histórias criam vida. Descubra agora