Hoje
Oregon, IllinoisO primeiro sopro que anunciava a chegada da primavera irrompeu pela janela mais alta da mansão Blackwell, enlaçando seus braços na cortina que a vestia. Balanço-a, sacudiu-a e chacoalhou-a e quando se cansou, procurou por outra vítima dentro do aposento, até que a encontrou na tez alva que devaneava junto ao travesseiro.
Inspirando uma ou duas vezes, investigou, ansiosa, se já conseguia sentir o perfume das flores que ameaçavam despertar de seus sonhos para a aurora ou da terra orvalhada pela chuva. Sempre gostou da primavera mais do que qualquer outra estação; cresceu em meio a ela.
Põe-se a expirar de volta o ar, contudo, enxotando os fios travessos de cima da face, pelo simples fato de perceber que aquele não era seu lar. Nunca era. E ao invés de toda essa harmonia de essências, só conseguia sentir o cheiro de estrume e urina, como se estivesse em um celeiro.
Atormentada, remexeu-se na cama e soltou um suspiro tão fatigado, que até o sopro começou a se cansar de suas traquinices.
Seus olhos dançaram até o relógio digital na cabeceira, forjando mais ainda o vazio em seu peito, visto que os números anunciavam a chegada de um novo dia. E sucumbindo, fechou bem os olhos e se concentrou; pôde ouvir, como se estivesse lá, as doze badaladas da grande torre do Palácio de Westminster ecoando por toda a capital. Não conseguia se lembrar de quanto tempo não voltava a sua Londres... Três ou quatro séculos, talvez?
Era um tempo muito longo para estar tão longe de casa.
O fato é que naquela noite, as doze baladas que soavam em sua memória, não confessavam só a chegada de um novo dia; para Calli, aquele instante significava o início de mais uma nova estrada, uma nova casa, uma nova história, um novo recomeço. Era como dar os primeiros passos de tempos em tempos. E se havia alguma coisa que de todo os seus novecentos anos a deixava inquieta e estressada, com pedras de gelo no estômago, era essa mudança. Bom, isso e...
─ Calli? Está acordada?
Suas pálpebras se abriram antes mesmo que o som fosse completamente registrado por seu cérebro, e em menos de uma fração de segundos, precipitadamente atirou-se na direção da voz em um rompante.
Houve um baque surdo, decorrente do choque entre a parede e o corpo robusto da vítima quando a menina o atacou, ao mesmo tempo em que suas garras alcançaram seu pescoço, pronta para o golpe final.
─ Pelo visto está. - Concluiu a voz, irritada, recolhendo de si as garras afiadas de Calli.
─ Pelo amor de Deus, Nick, porque você vive aparecendo do nada?! - Tão irritada quanto, pôs alguma distância entre eles, antes que o agredisse. - Eu quase te matei!
─ Assim como em todas as otras vezes. - Disse em um tom entediado. O sotaque francês que nunca o abandonava acentuando o "r" em suas palavras. - Parra uma morta-viva você se assusta muito facili.
─ Eu não me assusto muito fácil, só estava distraída! - Retrucou. Ele revirou os olhos em resposta, enquanto escarranchava-se sobre a cama da garota. - Afinal, como entrou aqui?
─ Você deixou a varanda abertá. - Deu de ombros, cruzando os braços atrás do pescoço, como se fosse óbvio.
─ Bom, tem uma coisa ali chamada Porta. - Apontou enfaticamente para o objeto. - Podia tê-la usado. Eu já ensinei você a bater! Não é educado entrar assim no quarto das pessoas, Nick! Posso ser vampira, mas também sou uma garota e...
─ Tem razão, irmá, não vai mais acontecer. ─ Concordou, condescendente, calando-a com um aceno presunçoso. Depois preencheu os lábios rosáceos com um sorriso sagaz; as presas muito claras e afiadas cintilando na noite. - Eu fui dar um passeio.
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Insólita Flama - Clã Ambrósio
VampireÀs vezes, uma mudança é bem acolhida. O motivo é simples: o tempo cobra um preço alto sobre a imortalidade. As pessoas se afastam, seus vizinhos desconfiam de quem você é, seus amigos suspeitam do que você faz e a cidade toda de repente tem você sob...