Ela

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Ela

Ponto de vista dele.

Todo dia de manhã, coloco meus óculos para enxergar as coisas com clareza. Vejo pessoas apressadas, carros indo e vindo, animais dormindo aqui e ali, casas de todas as cores e um dia, como de costume, bem ensolarado. Caminho até a estação do metrô de segunda a sexta. Cheia de pessoas circulando. Gente que eu não conheço pessoas novas todos os dias. Mas havia algumas que eu quase sempre via. Uma velhinha que aparentava ter seus setenta anos. Ela sempre conversava com quem sentava ao seu lado. Já havíamos batido um papo umas vezes. Na verdade, eu quase não falava, só a ouvia reclamar de como as pessoas são mal-educadas e como gostaria de viver no interior.
Também tinha um garoto com cabelo rastafári que ficava escutando "reagge" no sonzinho. Os mesmos vendedores de salgadinhos. Duas mulheres que só falavam da vida dos outros. E uma garota que sempre tinha um livro em mãos e que se dirigia a escola. Ela em particular me deixava curioso. Nunca olhava para ninguém nem um ponto específico. Sempre lendo o seu livro. Toda semana um novo. Algumas vezes conseguia ver a capa deles. Conde de Monte Cristo, Romeu e Julieta, Um amor para recordar, Os Lusíadas, A culpa é das estrelas, Dom casmurro. Teve um tempo que cada semana era um livro da coleção do Harry Potter. Quando parou de trazê-lo soube que tinha terminado a saga.

É fascinante vê-la lendo. Seus olhos compenetrados nas palavras de cada página. Com toda delicadeza passava as folhas, o encanto e fascínio que seu rosto revela quando lê um livro. Ela chora, ela ri, ela fica triste, alegre, envergonhada, magoada. Todos olham para ela como se fosse louca, mas ela não está nem aí. Na verdade, nem percebe que a olham, pois quando ela lê, parece que entra em outro mundo e só saí quando chega a sua estação de destino. O que é engraçado porque toda vez acho que ela vai passar direito da sua estação, mas não, quando as portas se abrem, ela já está de pé e se vai com o livro grudado ao peito como se quisesse protegê-lo do perigo. Quando chovia, ela colocava o livro enrolado num pano, dentro de um saco e entocava lá dentro da mochila e saia do metrô checando se o livro estava seguro. Eu a observo bastante. Gosto de observar as pessoas, interpretar rostos e tentar desvendar o que se passa na cabeça delas. Pareço meio louco, mas é só meio jeito.

O jeito quieto dela, seu fascínio pela leitura, sua concentração demasiada ao ler, seu rosto fácil de interpretar, suas emoções a flor da pele a cada novo trecho lido, me deixa encantado. Ela me prende a si com seu charme singular, com cada gesto inocente e seu estilo intelectual.
Depois de observá-la mais uma vez, nesses vinte minutos que leva até chegar a sua estação, a vejo partir com "Drácula" nas mãos. Durante todo esse ano, com apenas esse vinte minutos que a vejo todo dia, ela me conquistou. Nunca cruzamos um olhar, ela sempre olhava para o livro e eu sempre olhava para ela. Nunca trocamos uma palavra, ela por mergulhar na nova aventura que lia e eu por vergonha, medo.
Não, eu não sou aquele garoto conquistador, que sabe falar com as garotas. Sou apenas um nerd que leva sempre seu PSP consigo e que sempre olha para a mesma garota viciada em livros que o deixa fascinado.

Desço na minha estação e vou para a escola. Pensado no dia que terei coragem de falar com ela. Olhar nos olhos dela. E quase aconteceu uma vez, nesse dia, ela devia ter esquecido o livro em casa, pois chegou vasculhando a mochila procurando algo, até que pelo seu rosto aborrecido percebi que havia esquecido. E com certeza era seu companheiro inseparável. Nesses vinte minutos, ela não tinha um livro consigo e não sabia o que fazer. Olhava de um canto a outro. Eu a observava como sempre. Algumas vezes ela olhava na direção que eu estava, por vezes quase me pegou olhando para ela. Sou um tímido bobão, mas era impossível encará-la. Enfim, ela desceu ainda com uma expressão perdida por estar sem um livro. Suas reações nesse dia me deixaram confuso. Até que depois de tanto pensar entendi que o livro não era só um companheiro, mas também um escudo. Que em sua mente, ele a escondia do mundo, lhe protegia de outras pessoas. Ela se sente segura com um livro. Não se sente só. Quando está sem ele, ela deve se sentir desprotegida por estar no meio de várias pessoas. Seu jeito quieto e até um pouco assustado ao sentar junto de um estranho confirmavam que ela sente inseguranças ou até medo de conviver com pessoas. Talvez eu esteja equivocado, mas ela parece ter uma necessidade de se esconder do mundo. Pode ser um passado difícil, experiências ruins ou simplesmente não saber lidar com pessoas. Não sei e se não falar com ela um dia nunca saberei.

O dia se passou lento e só vinha ela na minha mente como vem acontecendo o ano todo. E o pior é que é o meu último ano na escola. Então não irei mais ao colégio. Nem pegar o metrô que uso toda semana, ou seja, não irei mais vê-la. O que me deixa angustiado. Sinto-me patético, mas não é fácil, ao menos para mim, conversar com garotas. Especialmente ela. Que parece um ser inalcançável. Além de todo frescor, inteligência que ela emana. Ela é a pessoa mais bela que vejo através dos meus velhos óculos. E pensar em não vê-la de novo é como uma ferida na alma.

Ao sair da escola, uma enorme chuva começou a cair e eu como sempre esqueci meu guarda-chuva. Sai correndo pela rua até encontrar uma igreja onde pude me abrigar até o temporal passar. Encosto-me na parede e olho os pingos de chuva caírem e o ouço farfalhar das folhas por causa do vento. O que me agrada. Tudo soa muito poético. Até que escuto alguns passos. Alguém surge correndo carregando a mochila nos braços tentando fugir da chuva. Vejo que é uma garota. E quando nossos olhares se cruzam a reconheço. A menina do metrô que pela primeira vez olhou nos meus olhos e eu olhei nos seus.


Ela/Ele/NósOnde histórias criam vida. Descubra agora