Ele
Do ponto de vista dela.
Antes de chegar à estação, vejo o céu ficar nublado. Procuro meu guarda-chuva na mochila e nada acho. Sempre trago comigo e geralmente não chove, mas no dia que esqueço o tempo muda. E ainda por cima o pano e a sacola que protegem meu livro também ficaram em casa por eu acreditar que não iria chover. Ótimo.
Ao menos tenho meu livro que é meu fiel amigo. Esquecê-lo é que seria trágico. Aconteceu uma vez e posso dizer que foi o pior dia da minha vida. Talvez seja melodramática, mas me sinto perdida sem ele. Principalmente quando estou num lugar que não conheço ninguém. Mesmo que o percurso leve apenas vinte minutos. Nem eu mesma me entendo. Mas sinto que o meu livro seja minha capa invisível. Sinto-me segura. Sinto-me em casa. Na vez que estive sem ele, meus olhos não tinham um ponto fixo, parecia uma louca sem rumo. Pessoas me assustam. Seus julgamentos, intenções e atitudes. Não lembro o porquê desse meu jeito, nem sei se tem um porquê. Só sei que estando somente eu e o meu livro, eu consigo estar bem em qualquer que seja o lugar em que esteja.
Bem, teve ao menos um ponto positivo no pior dia da minha vida. Tirei minhas dúvidas em relação ao garoto dos óculos azuis. De fato, pude concluir naquele dia, ele me olhava constantemente. Como se eu fosse uma peça rara em exposição ou algo que ele nunca tinha visto. Seu jeito observador que faz com ele pareça um sujeito obsessivo deveria me dar medo, mas ao contrário me deixam intrigada. O que se passa em sua cabeça para me olhar daquele jeito? Não sou bonita, bem esquisita na verdade e definitivamente não tenho nada de especial. Então, por quê?
Desde o primeiro dia de aula desse ano, notei o seu olhar sobre mim. Bem, indiretamente. Não tiro os olhos do livro, seja qual for, que esteja em minhas mãos. De soslaio, percebi seus olhares investidos em mim. Nunca tive muita certeza por causa da minha insegurança. Não tinha, nem tem motivo para ele olhar para mim. Ou tem? E o quê será? O que entendo é que seu olhar me deixou embebida de questionamentos. E de sentimentos que antes nunca senti. Ao invés de medo e intimidação, senti-me intrigada, curiosa, alegre e encantada. E até, uma vez, cheguei a notar certa beleza em mim. O que chega a ser um absurdo. Um garoto com quem nunca falei, nem se quer olhei em seus olhos, me fez sentir única e me fez admirá-lo somente por seus olhares insistentes.
Entro no metrô e assim outro dia se inicia, eu olhando para o meu livro e ele olhando para mim. Começo a ler o livro e não consigo conter as reações ao lê-lo. Eu sou um livro aberto. E cada emoção, sentimento sai em forma de lágrimas, sorrisos, risos e arrepios. Consigo ser totalmente eu em contato com um livro. Apesar de que pareço cem por cento concentrada e minhas reações saiam naturalmente, metade de minha atenção também está nele. Bem, ele não olha todo tempo diretamente para mim. De tempos em tempos, ele olha para o teto, para janela, mas sempre seu olhar volta para mim. O que é encantador. Seu olhar tem um efeito poderoso e de algum modo me faz sentir especial. Durante esses vinte minutos todos os dias. O que será que aconteceria se nos olhássemos diretamente? Não consigo imaginar, nem descrever o que sentiria.
E o que eu diria? Não sei conversar e os únicos amigos que tenho são meus livros. Mas uma palavra eu diria: "Obrigada." Por fazer com que me sinta feliz e a começar a descobri em mim algo de especial. E ele fez isso tudo com apenas um olhar.
Pela sua farda de terceiro ano, sei que é seu último ano na escola e que provavelmente não o verei ano que vem. O que me deixa perdida. É como estar sem meu livro, só que o sentimento é bem pior. Parece que estou perdendo um ente querido. Minha estação chega, me levanto, ele desvia seu olhar de mim como sempre e eu vou para escola.
É um paradoxo. O astral de toda a escola e minha alma. Enquanto toda a escola está na época dos jogos e todos estão empolgados e contentes, eu estou triste porque não verei mais o garoto que tem me deixado tão bem com seus olhares. Escondida atrás da escola com um livro na mão, deixo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Ele é um garoto peculiar, e tem um jeito estranho, mas que o torna admirável ao menos para mim. Leva sempre seu PSP consigo, mas nunca o vi jogando. Tem um estilo nerd que o torna interessante. Já o vi levando uma revistinha e tenho certeza que é viciado em super heróis. Deve ser ótimo com jogos e computadores. Conhecê-lo é algo que realmente quero, mas me falta coragem e percebi sua grande timidez. Que irônico nos admiramos, porém não nos falamos e talvez nunca nos falemos.
Felizmente nesse período as aulas terminam mais cedo. Pego o metrô o que só piora meu astral e vou espairecer num parque que conheço desde pequena. Época em que tudo era simples e eu sonhava com o príncipe encantado. Ele seria bonito, inteligente e me faria sentir de um jeito que não poderia ser explicado em palavras. Uma lágrima cai e logo após muitas outras. Somente ele vem em minha mente o que tem acontecido o ano todo.
Sinto um pingo de água cair no meu rosto e percebo que não são minhas lágrimas, mas sim a chuva chegando. Começo a correr com a mochila nos braços. Vejo uma igreja e vou à sua direção. Estou começando a fica bem molhada e continuo tentando fugir da chuva. Logo, chego à igreja. Mas paro de repente, e percebo quem está em minha frente. E pela primeira vez eu olho para o menino dos óculos azuis e ele me fez sentir de um jeito que não pode ser explicado em palavras.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ela/Ele/Nós
Romance"Nunca cruzamos um olhar, ela sempre olhava para o livro e eu sempre olhava para ela." "Mas uma palavra eu diria: "Obrigada." Por fazer com que me sinta feliz e a começar a descobri em mim algo de especial. E ele fez isso tudo com apenas um olhar...