Vovó ainda não tinha chego, quando eu e tia Ana terminamos de colocar boa parte do papo em dia. A tarde já estava avançando e, como titia era ligada no 220, logo ela voltou às suas tarefas, se recusando a aceitar ajuda de qualquer um. Então eu acabei ficando pela cozinha observando ela trabalhar.
Na verdade, tia Ana não era de fato a minha tia. Ela trabalhava na casa da minha avó desde... bom, desde sempre. E eu não sabia chamá-la de outra maneira.
No auge de seus 53 anos, eu esperava que ela tivesse encontrado alguém para estar ao seu lado. Um namorado ou crush, talvez. Seu filho mais velho morava na cidade com a esposa. Sua filha mais jovem passava boa parte da semana com eles, como ela me contou. Parece que é pouco cômodo chegar até a escola a partir da fazenda.
"Ia ser legal se ela e o Joca pudessem se conhecer melhor".
Inclusive, quando ele voltou à cozinha, após seu banho, eles engataram uma conversa sem fim, me ignorando por completo. Não que eu quisesse atrapalhar também. Com isso acabei subindo para tomar meu banho.
Só depois que eu terminei de subir o último degrau, percebi o que eu teria que enfrentar. A ideia de entrar naqueles quartos era muito assustadora. Seria como reviver todas as lembranças. Reviver toda aquela cena novamente.
Teimoso demais para desistir de frequentar o andar de cima da casa, e ainda inseguro demais para enfrentar os medos de frente, eu segui lentamente pelo corredor, passando a mão pelo papel de parede de flores bege em um fundo quase branco.
As três primeiras portas eram brancas, destinadas aos hóspedes. Já a porta seguinte era de três cores: rosa choque, verde pistache e laranja.
"- A porta tem essas cores, porque sua mãe não sabe se decidir sobre o que quer – disse vovó em meio a um riso contido.
- É claro que não. Essas eram as cores da moda.
- E também era moda usá-las todas ao mesmo tempo?
- Pode apostar que sim.
Todos rimos."
Agora essa lembrança me doía.
Suspirei lentamente.
Era essa porta que atormentava os meus sonhos.
Deixo meus dedos alisarem a madeira, até que cheguem à maçaneta, de repente sinto meu corpo exausto.
"Estou pronto para isso. Estou pronto para... – Respiro fundo – Não. Eu não estou pronto".
Apoio a testa na porta e sinto uma lágrima escorrer.
"Hoje não".
Então enxugo os olhos e continuo andando até o meu quarto. A porta verde.
Não é muito mais fácil entrar nele do que no quarto anterior, mas não há muitas escolhas. Então eu junto o resto de coragem que me sobra e giro a maçaneta.
Tudo está igual.
Os brinquedos nas prateleiras, os lápis de cor arrumados em cima da mesa, o mesmo tapete de carrinho desbotado, a cama de mogno, a velha manta verde, as estrelas fluorescentes no teto...
E tudo parece tão limpo.
Me pergunto se elas o mantêm assim, ou se é só por causa da minha chegada.
Vejo minhas malas apoiadas no chão perto da cama. Dou uma volta no quarto, revendo cada detalhe esquecido. Coloco a mão atrás do quadro na parede e consigo achar o meu antigo carrinho.
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Agora que Voltou
RomanceQuando ainda muito jovem, Gabriel passou por uma situação que nenhuma criança deveria passar. Essa tragédia, que desestruturou a sua família, fez com que ele e seu pai se mudassem de Minas Gerais para a grande São Paulo, deixando toda uma vida para...