Os 1% parte 1

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Dr. Allship ama seu emprego. Trabalha em um escritório muito limpo e branco. Todas suas recepcionistas são parecidas - mulheres brancas, loiras, com grandes seios e lábios rosados. Não há plantas ou outras coisas vivas lá. Nas paredes estão penduradas pinturas exóticas de mulheres em posições diversificadas. Há algumas luzes de teto que liberam um brilho rosado. O chão não tem uma mancha. Não há nada na porta da frente a não ser por uma pequena placa que diz "Dr. Allen Allship III, Cirurgião Plástico".

Dr. Allship não é um homem ruim. Ele sorri quando é apropriado. Ele gargalha quando é esperado que o faça. Ele tem uma família. Ele tem um cachorro. Ele é bom para ambos. Ele não fuma, não bebe, e não fala palavrões. Ele é um homem baixo, apenas 1,65m de altura e com cabelos grisalhos. Seu pai tinha sido um cirurgião, assim como seu avô. Eles compartilham a profissão, assim como o nome. E mais uma coisa. Os Allship sempre tiveram um aspecto peculiar em suas praticas. Dr. Allship, o atual e único Allen Allship vivo, executa procedimentos típicos. Lipoaspirações, face lifts, Botox - poderia fazer isso até dormindo. Esses fazem partes de 99% de sua clientela. Seus pacientes o veneram. Até fazem bons comentários sobre sua postura médica. Mas não é por isso que ele ama seu trabalho. Ele ama seu trabalho por causa do 1%. Seu pai dizia ser um chamado. É preciso fazer as pessoas ficarem extraordinárias. Fazê-las ficarem perfeitas. Seu avô costumava dizer que não sobreviveria com donas-de-casa gordas. Precisavam de pureza para se sobressair. Para serem os melhores. Para superar todas as expectativas. Os 1% são os pacientes especiais. Aqueles que nem sabem que são pacientes até serem submetidos a prática. Dr. Allship está trabalhando em um 1% em sua sala de operações. #1476. Ele está sozinho, a não ser pela paciente. Ele a encontrou implorando por mudanças perto da estação de trem. Era completamente nojenta. Seus braços eram cobertos de cicatrizes de picadas de agulha e seu cabelos estava caindo aos montes. Tinha duas unhas faltando. Seus dentes eram amarelados, quebrados e caídos. Estava sentada em seu próprio mijo, drogada demais para perceber que estava urinando. Era perfeita. Hoje ele está depilando os pés dela. Não os pelos, óbvio. Estavam tão detonados e com cicatrizes dela aplicar a droga entre os dedos do pé que era improvável que algum pelo sobrevivesse ali. Não, Dr. Allship está raspando a pele. A carne. Está modelando um tamanho 34 perfeito. Dr. Allship gosta de numerações estranhas. #1476 não pode se mover. Ela não está amarrada, mas recebeu uma dose pesada de medicamento paralisante. É uma técnica interessante porque, mesmo que não possa se mover, consegue sentir tudo que está acontecendo. O processo é parte da transformação, já dizia seu pai.

Na verdade, ela estava em posição sentada, os olhos colados abertos. Dr. Allship gosta que seus 1% vejam a mágica acontecendo. #1476 tem sido uma ótima paciente até agora. Não gritou muito quando foi trazida ao consultório. Provavelmente achou que ele a pagaria por sexo. Ele, claro, jamais tocaria em uma paciente de maneira inapropriada. Segue um código de ética muito rigoroso. Mas agora ela não pode mais gritar, parte por causa da medicação paralisante, mas principalmente porque ele arrancou a parte debaixo de seu maxilar. O queixo estava muito apodrecido para ser salvo. A língua dela ficava caída pelo buraco de onde deveria estar o maxilar. Fazia um barulho muito feio quando a língua batia contra as bochechas, então Dr. Allship está usando fones de ouvido. Um calmo concerto de Bach ecoa em seus ouvidos enquanto tritura a pele calosa que um dia fora os pés dela.

Está tudo indo muito bem. Os ossos estão se soltando com facilidade. O sangue sempre é um problema, mas ele já tem alguém para limpar a bagunça depois que terminar. A saliva dela também está sendo outro empecilho, pois está babando tudo que fica abaixo do (não existente) queixo. Mas Dr. Allship é muito paciente. Calmamente ele limpa a baba, posicionando a cabeça dela um pouco mais para trás. #1476 está sendo bem cooperativa.

O telefone da sala de operações começa a tocar. Isso incomoda Dr. Allship, que não gosta de ser interrompido. Mas estava quase finalizando seu trabalho no pé esquerdo. Ele grampeia uma veia para prevenir hemorragias e pega o telefone.

"Sim?"

Era uma das atendentes. Ela explica que há uma cliente na recepção exigindo ser atendida.

"Nome?" Ele pergunta, breve.

"Becky."

"Vinte minutos." Desliga o telefone.

Becky é uma cliente. Tinha-o abordado alguns meses atrás sobre um procedimento um tanto singular. Ela queria raspar as cordas vocais para que sua voz soasse mais jovem. Quando questionada o quão jovem queria que sua voz parecesse, ela respondeu "Nove." Dr. Allship, sendo um profissional de respeito, cumpriu o pedido e fez a cirurgia. Foi um sucesso.

Mas desde então ela tem o assediado repetidamente, pedindo procedimentos cada vez mais extremos. Primeiro, queria ter os seios removidos para parecer mais com o tórax de uma criança. Ele atendeu o pedido. Depois quis ter todos os pelos do seu corpo removidos. Ele atendeu o pedido novamente. Todas as vezes ela aparecia sem consulta marcada e exigia ser atendida imediatamente. Mas como era uma cliente muito fiel, ele permitiu esse comportamento. E na verdade, estava intrigado com a singularidade daquela mulher.

Mas naquele momento ele estava coberto com o sangue da #1476. Está satisfeito com o formato do novo pé esquerdo dela, e cuidadosamente faz o curativo. Tinha feito planos de terminar os dois naquele dia, mas o pé direito podia esperar até amanhã.

Ele retira suas vestes médicas e lava as mãos. Não gosta da bagunça que as cirurgias causam, mas é um mal necessário. Pega o telefone, uma de suas recepcionistas atende.

"Sim?" Pergunta em uma voz doce.

"#1455, por favor, venha buscar #1476 e a coloque de volta na gruta. Também preciso que #955 suba para limpar."

"Entendido."

Dr. Allship desliga o telefone vagarosamente. Não olha para trás enquanto sai da sala de operações. Ele fecha a porta branca.



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