O sinal e o simbolo da Cruz

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Todas as religiões e ideologias têm seu símbolo visual, que exemplifica um aspecto importante de sua história
ou crenças. A flor de loto, por exemplo, embora tenha sido usada pelos chineses, egípcios e hindus antigos com outros significados, hoje está particularmente associada ao budismo. Por causa de sua forma de roda, pensa-se que represente o círculo do nascimento e da morte ou a emergência da beleza e da harmonia das águas turvas a
partir do caos. Às vezes representa-se Buda entronizado na flor de loto totalmente aberta.
O judaísmo antigo, com medo de quebrar o segundo mandamento, que proíbe a fabricação de imagens,
evitava sinais e símbolos visuais. O judaísmo moderno, porém, emprega o assim chamado Escudo ou Estrela de
Davi, um hexagrama formado pela combinação de dois triângulos eqüiláteros. O Escudo fala da aliança de Deus com Davi de que o trono deste seria estabelecido para sempre e que o Messias viria da sua descendência. O islã,
a outra fé monoteísta que se levantou no Oriente Médio, é simbolizado pelo crescente ou meia-lua, pelo menos
na Ásia Ocidental. Originalmente o crescente representava uma fase da lua e era o símbolo de soberania em
Bizâncio antes da conquista muçulmana.
As ideologias seculares deste século também possuem seus sinais que são universalmente reconhecíveis. O
martelo e a foice do marxismo, adotados em 1917 pelo governo soviético e retirados de um quadro belga do século dezenove, representam a indústria e a agricultura. O fato de serem cruzados significa a união de
operários e camponeses, da fábrica e do campo. Da suástica, por outro lado, há vestígios de 6.000 anos atrás. As
pontas se dobram para a direita, simbolizando ou o movimento do sol no céu, ou o ciclo das quatro estações, ou o processo de criatividade e prosperidade ("svasti" em sânscrito significa "bem-estar"). No início deste século, porém, alguns alemães adotaram a suástica como símbolo da raça ariana. Então Hitler se apossou dela e ela passou a representar a sinistra intolerância racial nazista.
O Cristianismo, portanto, não é exceção quanto a possuir um símbolo visual. Todavia, a cruz não foi o
primeiro. Por causa das selvagens acusações dirigidas contra os cristãos, e da perseguição a que estes foram
submetidos, eles tiveram de "ser muito circunspectos e evitar ostentar sua religião. Assim a cruz, agora símbolo universal do Cristianismo, a princípio foi evitada, não somente por causa da sua associação direta com Cristo, mas também em virtude de sua associação vergonhosa com a execução de um criminoso comum."
1 De modo que nas paredes e tetos das catacumbas (sepulcros subterrâneos na periferia de Roma, onde os cristãos perseguidos provavelmente se esconderam), os primeiros motivos cristãos parecem ter sido ou pinturas evasivas de um pavão (que se dizia simbolizar a imortalidade), uma pomba, o louro dos atletas ou, em particular, de um
peixe. Somente os iniciados saberiam, e ninguém mais poderia adivinhar que ichthys ("peixe") era o acrônimo
de Iesus Christos Theou Huios Soter ("Jesus Cristo Filho de Deus Salvador"). Mas o peixe não permaneceu como símbolo cristão, sem dúvida porque a associação entre Jesus e o peixe era meramente acronímica (uma disposição fortuita de letras) e não possuía nenhuma importância visual.
Um pouco mais tarde, provavelmente durante o segundo século, os cristãos perseguidos parecem ter preferido
pintar temas bíblicos como a arca de Noé, Abraão matando o cordeiro no lugar de Isaque, Daniel na cova dos
leões, seus três amigos na fornalha de fogo, Jonas sendo vomitado pelo peixe, alguns batismos, um pastor
carregando uma ovelha, a cura do paralítico e a ressurreição de Lázaro. Tudo isso simbolizava a redenção de
Cristo e não era incriminador, uma vez que somente os entendidos teriam sido capazes de interpretar o seu
significado. Além disso, o monograma Chi-Rho (as duas primeiras letras da palavra grega Christos) era um
criptograma popular, muitas vezes representado em forma de cruz. Esse criptograma às vezes continha uma
ovelha em pé na sua frente, ou uma pomba.
Um emblema cristão universalmente aceito teria, obviamente, de falar a respeito de Jesus Cristo, mas as
possibilidades eram enormes. Os cristãos podiam ter escolhido a manjedoura em que o menino Jesus foi colocado, ou o banco de carpinteiro em que ele trabalhou durante sua juventude em Nazaré, dignificando o trabalho manual, ou o barco do qual ele ensinava as multidões na Galiléia, ou a toalha que ele usou ao lavar os
pés dos apóstolos, a qual teria falado de seu espírito de humilde serviço. Também havia a pedra que, tendo sido removida da entrada do túmulo de José, teria proclamado a ressurreição. Outras possibilidades eram o trono, símbolo de soberania divina, o qual João, em sua visão, viu que Jesus partilhava, ou a pomba, símbolo do Espírito Santo enviado do céu no dia do Pentecoste. Qualquer destes sete símbolos teria sido apropriado para indicar um aspecto do ministério do Senhor. Mas, pelo contrário, o símbolo escolhido foi uma simples cruz. Seus dois braços já simbolizavam, desde a remota antigüidade, os eixos entre o céu e a terra. Mas a escolha dos
cristãos possuía uma explicação mais específica. Desejavam comemorar, como centro da compreensão que
tinham de Jesus, não o seu nascimento nem a sua juventude, nem o seu ensino nem o seu serviço, nem a sua ressurreição nem o seu reino, nem a sua dádiva do Espírito, mas a sua morte e a sua crucificação. Parece que o crucifixo (isto é, uma cruz contendo uma figura de Cristo) não foi usado até o sexto século.
Parece certo que, pelo menos a partir do segundo século, os perseguidos cristãos não apenas desenhavam,
pintavam e gravavam a cruz como símbolo visual de sua fé, mas também faziam o sinal da cruz em si mesmos
ou nos outros. Uma das primeiras testemunhas dessa prática foi Tertuliano, o advogado-teólogo do Norte da África, em cerca de 200 A.D. Escreveu ele: A cada passo e a cada movimento dados para frente, em cada entrada e em cada saída, quando nos vestimos e nos calçamos, quando tomamos banho, quando nos assentamos à mesa, quando acendemos as lâmpadas; no sofá, na cadeira, nas ações corriqueiras da vida diária, traçamos na testa o sinal [da cruz]2 . Hipólito, culto presbítero de Roma, é testemunha especialmente interessante. Sabe-se que ele foi um
"reacionário declarado que, em sua própria geração, era a favor do passado em vez do futuro". Seu famoso tratado A Tradição Apostólica (cerca de 215 A.D.) "afirma explicitamente estar registrando somente formas e
modelos de rituais já tradicionais, e costumes já há muito estabelecidos, e ter sido escrito em protesto deliberado contra inovações".3 Quando, pois, ele descreve certas "observâncias da igreja", podemos ter certeza de que essas
já estavam sendo praticadas uma geração ou mais antes dele. Ele menciona que o sinal da cruz era usado pelo bispo ao ungir a testa do candidato durante a Confirmação, e o recomenda na oração particular: "Imitem sempre a ele (Cristo), fazendo, com sinceridade, um sinal na testa: pois este é o sinal da sua paixão". O sinal da cruz,
acrescenta ele, também é proteção contra o mal: "Quando tentado, sempre reverentemente sela a tua testa dom o sinal da cruz. Pois este sinal da paixão, quando o fizeres com fé, é mostrado e manifestado contra o diabo, não a fim de que possas ser visto pelos homens, mas, por teu conhecimento, apresenta-o como um escudo."4 Não é necessário que tachemos este hábito de superstição. Pelo menos na sua origem, o sinal da cruz teve a finalidade de identificar e, deveras, santificar cada ato como se pertencesse a Cristo.
Na metade do terceiro século, quando Cipriano, outro africano do norte, era bispo de Cartago, o imperador
Deciano (250-251 A.D.) desencadeou uma terrível perseguição, durante a qual milhares de cristãos morreram
pelo fato de se terem recusado a oferecer sacrifício ao nome dele. Na ânsia de fortalecer o moral do povo, e
incentivá-los a aceitar o martírio em vez de comprometer a fé cristã, Cipriano lembrava-os da cerimônia da cruz: "tomemos também como proteção da nossa cabeça o capacete da salvação. . . para que nossa fronte possa ser fortificada, de modo que conservemos seguro o sinal de Deus."5 Quanto aos fiéis que suportaram prisões e
arriscaram a vida, Cipriano os louvava, dizendo: "as vossas frontes, santificadas pelo selo de Deus. . . foram reservadas para a coroa do Senhor".6 Richard Hooker, teólogo anglicano e Mestre do Templo de Londres do século dezesseis, aplaudiu o fato de que os primitivos Pais da Igreja, apesar do escárnio dos pagãos para com os sofrimentos de Cristo, "escolheram o sinal da cruz (no batismo) antes que qualquer outro sinal externo, pelo qual o mundo pudesse facilmente
sempre discernir o que eram".7 Ele estava cônscio das objeções dos puritanos. "O sinal da cruz e que tais
imitações do papado", diziam eles, "as quais a igreja de Deus na época dos apóstolos jamais reconheceu", não
deviam ser usados, pois não se devem acrescentar invenções humanas às instituições divinas, e sempre houve o perigo do seu mau uso como superstição. Assim como o rei Ezequias destruiu a serpente de bronze, da mesma
forma o sinal da cruz deve ser abandonado. Mas Hooker permaneceu firme na sua posição. Em "questões indiferentes", que não eram incompatíveis com a Escritura, os cristãos estavam livres. Além disso, o sinal da cruz possuía uma utilidade positiva: é "para nós uma advertência. . . para que nos gloriemos no serviço de Jesus
Cristo, e não baixemos a cabeça como homens que dele têm vergonha, embora o sinal da cruz nos traga opróbrio e ignomínia nas mãos deste mundo vil."8
Foi Constantino, o primeiro imperador a professar a fé cristã, quem acrescentou ímpeto ao uso do símbolo da cruz. Pois (segundo Eusébio) nas vésperas da Batalha da Ponte Milviana, a qual lhe deu supremacia no Ocidente
(321-313 A.D.), ele viu uma cruz iluminada no céu, acompanhada das palavras in hoc signo vinces ("vence por este sinal"). Imediatamente ele a adotou como seu emblema e mandou brasoná-la nos estandartes de seu
exército. Qualquer que seja a idéia que façamos de Constantino e do desenvolvimento da "cristandade" depois dele, pelo menos a igreja tem fielmente preservado a cruz como seu símbolo central. Em algumas tradições eclesiásticas o candidato a batismo ainda é marcado com esse sinal, e os parentes do cristão que, depois de morrer é enterrado e não cremado, muito provavelmente mandarão erigir uma cruz sobre a sua sepultura. Assim,
desde o nascimento do cristão até a sua morte, como podíamos dizer, a igreja procura nos identificar e proteger com uma cruz.
A escolha que os cristãos fizeram da cruz como símbolo da sua fé é tanto mais surpreendente quando nos
lembramos do horror com que era tida a crucificação no mundo antigo. Podemos compreender por que a
mensagem da cruz que Paulo pregava era "loucura" para muitos (1 Coríntios 1:18, 23). Como poderia uma
pessoa de mente sadia adorar como deus um homem morto, justamente condenado como criminoso e submetido à forma mais humilhante de execução? Essa combinação de morte, crime e vergonha colocava-o muito além do respeito, sem falar da adoração.
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Os gregos e os romanos se apossaram da crucificação que, aparentemente, fora inventada pelos "bárbaros" que
viviam à margem do mundo conhecido. E ela, com toda a probabilidade, o método mais cruel de execução
jamais praticado, pois deliberadamente atrasa a morte até que a máxima tortura seja infligida. Antes de morrer, a
vítima podia sofrer durante dias. Ao adotarem a crucificação, os romanos a reservaram para assassinos, rebeldes,
ladrões, contanto que também fossem escravos, estrangeiros ou pessoas sem posição legal ou social. Os judeus,
portanto, se enraiveceram quando o general romano Varus crucificou 2.000 dos seus compatriotas em 4 a.C, e quando, durante o cerco de Jerusalém, o general Tito crucificou tantos fugitivos da cidade que não se podia encontrar "espaço. . . para as cruzes, nem cruzes para os corpos".
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Os cidadãos romanos, a não ser em casos extremos de traição, estavam isentos de crucificação. Cícero, num
de seus discursos, condenou-a como crudelissimum taeterrimumque supplicium, "um castigo muitíssimo cruel e repugnante".11 Um pouco mais tarde ele declarou: "Atar um cidadão romano é crime, chicoteá-lo é abominação, matá-lo é quase um ato de assassínio: crucificá-lo é - o quê? Não há palavras que possam descrever ato tão
horrível".12 Cícero foi ainda mais explícito em 63 a.C. em sua defesa bem-sucedida do idoso senador Gaio
Rabírio, que havia sido acusado de homicídio: "a própria palavra cruz deve ser removida para longe não apenas da pessoa do cidadão romano, mas também de seus pensamentos, olhos e ouvidos. Pois não é somente a
ocorrência destas coisas (os procedimentos da crucificação) ou a capacidade de suportá-las, mas a possibilidade delas, a expectativa, deveras, a mera menção delas, que é indigna de um cidadão romano e de um homem livre".13
Se os romanos viam com horror a crucificação, da mesma forma viam-na os judeus, embora por motivos
diferentes. Os judeus não faziam distinção entre o "madeiro" e a "cruz", entre o enforcamento e a crucificação.
Eles, portanto, automaticamente aplicavam aos criminosos crucificados a terrível declaração da lei de que "o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Deuteronômio 21:23). Eles não podiam crer que o Messias de
Deus morreria sob a maldição divina, pendurado num madeiro. No dizer de Trifo, um judeu, a Justino,
apologista cristão: "Quanto a este ponto sou excessivamente incrédulo".14
De forma que, quer de criação romana, quer judaica, ou ambas, os primitivos inimigos do Cristianismo não perdiam a oportunidade de ridicularizar a reivindicação de que a vida do ungido de Deus e Salvador dos homens tinha acabado numa cruz. Tal idéia era loucura. Esse sentimento é bem exemplificado por um grafito do segundo século, descoberto no monte Palatino em Roma, na parede de uma casa que, segundo alguns eruditos, foi usada como escola para os pajens imperiais. E o quadro mais antigo da crucificação, e é uma caricatura. Um desenho grosseiro representa, esticado numa cruz, um homem com a cabeça de um burro. Embaixo, rabiscado com letras
desiguais, estão as palavras ALEXAMENOS CEBETE THEON, "Ale-xamenos adora a Deus". O desenho encontra-se hoje no Museu Kircherian de Roma. Qualquer que tenha sido a origem da acusação do culto ao
burro (atribuída tanto a judeus quanto a cristãos), era o conceito da adoração a um homem que estava sendo exposto ao motejo.
Detectamos a mesma nota de escárnio em Luciano de Samosata, satirista pagão do segundo século. Em O
Passamento de Peregrino (um convertido cristão fictício a quem ele apresenta como charlatão), Samosata
difama os cristãos, dizendo que "adoravam o próprio sofista crucificado e viviam sob suas leis".

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