O fato de a cruz se tornar um símbolo cristão, e que os cristãos, teimosamente, se recusaram, apesar do ridículo, a descartá-lo em favor de alguma coisa menos ofensiva, só pode ter uma explicação. Significa que a
centralidade da cruz teve origem na mente do próprio Jesus. Foi por lealdade a ele que seus seguidores se
apegaram com tanta tenacidade a esse sinal. Que evidência há, pois, de que a cruz se encontrava no centro da perspectiva do próprio Jesus?
Nosso único vislumbre da mente em desenvolvimento do menino Jesus nos é dado na história de como, com a
idade de 12 anos, ele foi levado a Jerusalém na época da Páscoa e então, por engano, deixado para trás. Quando seus pais o encontraram no templo, "assentado no meio dos mestres, ouvindo-os e interrogando-os", eles o repreenderam. Disseram que o procuravam aflitos. "Por que me pro-curáveis?" respondeu ele com inocente espanto. "Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?" (Lucas 2:41-50). Lucas conta a história com uma agonizante economia de detalhes. Portanto, devemos ter cuidado em não colocar nela mais do que a própria narrativa justifica. Isto, porém, podemos afirmar, que já com a idade de 12 anos Jesus se referia a Deus como seu
"Pai" e também sentia uma compulsão interior de se ocupar com os assuntos dele. Ele sabia possuir uma missão.
Seu Pai o tinha enviado ao mundo com um propósito. Essa missão ele devia realizar; esse propósito ele devia cumprir. E estes emergem gradativamente na narrativa dos Evangelhos.
Os evangelistas sugerem que o batismo e a tentação de Jesus foram ocasiões em que ele se comprometeu em seguir o caminho de Deus em vez do caminho do diabo, o caminho do sofrimento e da morte em vez do
caminho da popularidade e da fama. Contudo, Marcos (acompanhado por Mateus e Lucas) aponta um evento
posterior no qual Jesus começou a ensinar claramente sua missão. Foi o ponto mais importante de seu ministério público. Tento-se retirado com os apóstolos para o distrito norte, nos arredores de Cesaréia de Filipe, aos pés do monte Hermom, ele lhes fez a pergunta direta sobre quem eles pensavam que ele era. Quando Pedro respondeu que ele era o Messias de Deus, imediatamente Jesus "advertiu-os de que a ninguém dissessem tal coisa a seu respeito" (Marcos 8:29-30). Esta ordem estava de acordo com suas instruções prévias acerca de guardarem o assim chamado "segredo messiânico". Contudo, agora algo novo aconteceu: Jesus então começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse. E isto ele expunha claramente (Marcos 8:31-32).
"Claramente" é tradução de parresia, cujo significado é "com liberdade de discurso", ou "abertamente". Não
devia haver segredo acerca do assunto. O fato de sua messianidade havia sido mantido em segredo porque o povo tinha entendido mal o seu caráter. A expectativa messiânica popular era de um líder político
revolucionário. João nos diz que no auge da popularidade galiléia de Jesus, depois de alimentar os cinco mil, as multidões tinham querido "arrebatá-lo para o proclamarem rei" (João 6:15). Agora que os apóstolos haviam claramente reconhecido e confessado a sua identidade, contudo, ele podia explicar a natureza de sua messianidade, e fazê-lo abertamente. Pedro censurou-o, horrorizado pelo destino que ele havia predito para si
mesmo. Mas Jesus repreendeu a Pedro com palavras fortes. O mesmo apóstolo que, ao confessar a messianidade divina de Jesus, tinha recebido uma revelação do Pai (Mateus 16:17), havia sido enganado pelo diabo, com o intuito de negar a necessidade da cruz. "Arreda! Satanás", disse Jesus, com uma veemência que deve ter assustado os seus ouvintes. "Porque não cogitas das coisas de Deus, e, sim, das dos homens" (Marcos 8:31-33).
Em geral esse incidente é tido como a primeira "predição da paixão". Já tinha havido alusões passageiras
(exemplo: Marcos 2:19-20); mas essa foi bem direta. A segunda alusão foi feita um pouco mais tarde, enquanto
Jesus passava, incógnito, pela Galiléia. Disse ele aos Doze: O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará (Marcos 9:31).
Marcos afirma que os discípulos não compreenderam o que ele queria dizer, e tiveram medo de lhe perguntar. Mateus acrescenta que "se entristeceram grandemente" (Mateus 17:22-23). Foi este, provavelmente, o tempo em , segundo Lucas, Jesus "manifestou no semblante a intrépida resolução de ir para Jerusalém" (9:51). Ele estava decidido a cumprir o que fora escrito a seu respeito.
Jesus fez a terceira "predição da paixão" quando se dirigiam à Cidade Santa. Marcos a introduz com uma
gráfica descrição do espanto que a resolução do Senhor inspirou nos discípulos: Estavam de caminho, subindo para Jerusalém, e Jesus ia adiante dos seus discípulos. Esses se admiravam e o seguiam tomados de apreensões. E Jesus, tornando a levar à parte os doze, passou a revelar-lhes as coisas que se lhe deviam sobrevir, dizendo: Eis que subimos para Jerusalém e o Filho do homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; mas depois de três dias ressuscitará.
Lucas acrescenta o seu comentário de que "vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos
profetas, no tocante ao Filho do homem" (Lucas 18:31-34).16
Esta repetição tripla da predição da paixão acrescenta uma nota de solenidade à narrativa de Marcos. É desta forma que ele, delibera-damente, prepara seus leitores, como Jesus, deliberadamente, preparou os Doze para os terríveis eventos que estavam pela frente. Ajuntando as três predições, a ênfase mais impressionante não é que Jesus seria traído, rejeitado e condenado por seu próprio povo e seus líderes, nem que eles o entregariam aos gentios que dele escarneceriam e o matariam, nem que depois de três dias ele ressurgiria dentre os mortos. Nem
é tampouco que Jesus se designava de "Filho do homem" (a figura celestial a quem Daniel viu em sua visão,
vindo nas nuvens do céu, recebendo autoridade, glória e poder soberano, e recebendo adoração das nações) e,
contudo, paradoxalmente, afirmava que, como Filho do homem, ele sofreria e morreria, combinando assim, com ousada originalidade, as duas figuras messiânicas do Antigo Testamento, a do Servo Sofredor de Isaías 53, e a do Filho do homem reinante de Daniel 7. Mais impressionante ainda é a determinação que ele tanto expressou
como exemplificou. Ele devia sofrer, ser rejeitado e morrer, disse ele. Tudo o que fora escrito a seu respeito na
Escritura devia ser cumprido. Assim, ele se dirige para Jerusalém e vai adiante dos Doze. Ele instantaneamente reconheceu que o comentário negativo de Pedro era de procedência satânica e, portanto, instantaneamente o repudiou.
Embora essas três predições formem um trio óbvio por causa da sua estrutura e palavreado semelhante, os
Evangelhos registram pelo menos mais oito ocasiões em que Jesus se referiu à sua morte. Descendo do monte onde havia sido transfigurado, ele advertiu de que sofreria nas mãos dos seus inimigos assim como João Batista havia sofrido, e em resposta ao pedido injuriosamente egoísta de Tiago e João, que desejavam os melhores lugares no reino, disse que ele próprio tinha vindo para servir, não para ser servido, e "para dar a sua vida em resgate de muitos".18 As restantes seis alusões foram todas feitas durante a última semana da sua vida, à proporção que a crise se aproximava. Ele via a sua morte como a culminância de séculos de rejeição judaica da mensagem de Deus e predisse que o juízo divino traria um fim ao privilégio nacional judaico.
Então na terçafeira, mencionando a páscoa, ele disse que ia ser "entregue para ser crucificado"; na casa em Betânia ele descreveu o perfume derramado na sua cabeça como em preparação para o seu sepultamento; no cenáculo ele insistiu em que o Filho do homem iria assim como dele estava escrito, e deu-lhes pão e vinho como emblema do seu corpo e sangue, assim prefigurando sua morte e requisitando sua comemoração. Finalmente, no jardim do Getsêmani ele recusou ser defendido por homens ou anjos, pois "como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?"20 Desta forma, os evangelistas sinóticos dão testemunho comum ao fato de que Jesus tanto previu claramente quanto repetidamente predisse a aproximação da sua morte.
João omite estas predições precisas. Contudo, ele dá testemunho do mesmo fenômeno mediante suas sete
referências à "hora" de Jesus (geralmente hora, mas uma vez kairos, "tempo"). Era a hora do seu destino, na qual ele deixaria o mundo e voltaria ao Pai. Além disso, sua hora estava sob o controle do Pai, de modo que a princípio ainda não havia chegado, embora no final ele diria confiantemente que ela havia chegado.
Quando Jesus disse a sua mãe nas bodas de Caná, depois que o vinho acabara, e a seus irmãos, quando
queriam que ele subisse para Jerusalém e se manifestasse publicamente: "A minha hora ainda não chegou", o significado era claro. Mas João queria que seus leitores detectassem o significado mais profundo, embora a mãe
e os irmãos de Jesus não o tivessem percebido.21 João continua a partilhar este segredo com seus leitores, e o usa a fim de explicar por que as afirmativas aparentemente blasfemas de Jesus não levaram à sua prisão. "Então procuravam prendê-lo", comenta ele, "mas ninguém lhe pôs a mão, porque ainda não era chegada a sua hora".
Somente quando Jesus chega a Jerusalém pela última vez é que João torna explícita a referência. Quando alguns gregos pediram para vê-lo, a princípio ele disse: "E chegada a hora de ser glorificado o Filho do homem", e então, depois de falar claramente da sua morte, ele prossegue: "Agora está angustiada a minha alma, que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora. Pai, glorifica o teu
nome."23 Então, duas vezes no cenáculo, ele fez referências finais a que o tempo havia chegado para que ele deixasse o mundo e fosse glorificado.
Por mais incertos que possamos nos sentir acerca das primeiras alusões à sua "hora" ou "tempo", não podemos
ter dúvidas a respeito das últimas três. Pois Jesus especificamente chamou a sua "hora" de o tempo de sua "glorificação", o qual (como veremos mais tarde), começou com sua morte, e acrescentou que não podia pedir que fosse livrado dela porque era este o motivo de ele ter vindo ao mundo. Deveras, não é provável que o paradoxo registrado por João tenha sido acidental, que a hora pela qual ele tinha vindo era a hora em que o deixava. Marcos torna a questão ainda mais explícita ao identificar a sua "hora" com o seu "cálice". Tendo esta evidência, suprida pelos escritores dos Evangelhos, o que podemos dizer sobre a perspectiva de
Jesus acerca da sua própria morte? Além de qualquer dúvida, ele sabia que ela ia acontecer - não no sentido em que todos nós sabemos que morreremos um dia, mas no sentido em que ele teria uma morte violenta, prematura e, contudo, intencional. Mais do que isso, ele apresenta três motivos interligados para sua inevitabilidade.
Primeiro, ele sabia que ia morrer por causa da hostilidade dos líderes nacionais judaicos. Parece que esta
hostilidade fora despertada bem cedo durante o seu ministério público. A sua atitude para com a lei em geral, e
para com o Sábado em particular, os enraivecia. Quando ele insistiu em curar numa sinagoga, no dia de Sábado, um homem que tinha a mão ressequida, Marcos nos diz que "retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida" (3:6). Jesus deve ter percebido a intenção deles. Ele também conhecia o registro da perseguição dos profetas fiéis no Antigo Testamento.26 Embora soubesse que era mais do que profeta, ele também sabia que não era menos, e que, portanto, podia esperar tratamento semelhante. Ele era uma ameaça à posição e preconceito dos líderes. Segundo Lucas, depois que Jesus leu e explicou Isaías na sinagoga de Nazaré, em cuja exposição ele parecia ensinar uma preferência divina pelos gentios, "todos na
sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira. E íevantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até ao cume do monte sobre o qual estava edificada, para de lá o precipitaram abaixo". Acrescenta Lucas que "Jesus, porém, passando por entre eles, retirou-se" (4:16-30). Mas ele escapou por pouco. Jesus sabia que mais cedo ou mais tarde eles o apanhariam.
Segundo, ele sabia que ia morrer porque era isto o que estava escrito nas Escrituras acerca do Messias. "Pois o Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito" (Marcos 14:21). Deveras, referindo-se ao testemunho
profético do Antigo Testamento, ele tinha a tendência de ligar a morte e a ressurreição, os sofrimentos e a glória
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A Cruz de Cristo
SpiritualitéO símbolo universal da fé cristã não é a manjedoura, mas a cruz. Mesmo assim, muitos cristãos não entendem o significado da cruz nem o motivo por que Cristo precisou morrer. O teólogo John Stott apresenta respostas a questões inquietantes ao analisa...