ANTHERO DE QUENTAL ***
Produced by Pedro Saborano, Ricardo Diogo and Tiago Tejo, and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional Digital--http://bnd.bn.pt).
SONETOS
OS SONETOS COMPLETOS
DE
Anthero de Quental
publicados por
J. P. Oliveira Martins
PORTO
LIVRARIA PORTUENSE
DE
_LOPES & C.^a--EDITORES_
119, Rua do Almada, 123*
1886
PORTO
TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL
Rua da Fabrica, 66
Escrevendo estas breves paginas á frente dos _Sonetos_ de Anthero de Quental tenho a satisfação intima de cumprir o dever de tornar conhecida do publico a figura talvez mais caracteristica do mundo litterario portuguez, e decerto aquella sobre que a lenda mais tem trabalhado. Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem écco no espirito vulgar que faz reputações e dá popularidade, ha-de encontrar um acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar emquanto houver corações afflictos, e emquanto se fallar a linguagem portugueza.
Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquillo que ao publico não interessa: a viva amisade, a estreita communhão de sentimentos, o affecto quasi fraterno que ha perto de vinte annos nos une, ao poeta e ao seu critico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma unica alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas vezes as nossas lagrimas, sempre as nossas dores e os nossos enthusiasmos ou o nosso desalento.
Discutindo em permanencia, discordando frequentemente, ralhando a miudo, zangando-nos ás vezes e abraçando-nos sempre: assim tem decorrido para nós perto de vinte annos. Mas o leitor é que nada tem que vêr com esses casos particulares, nem com o abraço que trocámos no dia em que primeiro nos conhecemos e que só terminará n'aquelle em que um de nós, ou ambos nós, formos descançar para sempre sob meia duzia de pás de terra fria.
I
Eu não conheço phisionomia mais difficil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possivel desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Anthero de Quental dava _alma_ para uma familia inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a intelligencia mais critica, o instincto mais pratico, a sagacidade mais lucida, que eu conheço. É um poeta que sente, mas é um raciocinio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.
Inventa, e critíca. Depois, por um movimento reflexo da intelligencia, dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou.--O seu temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma creança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermittentemente é duro e violento.
É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediencia á qual, e com esforço, se faz colerico, fal-o tambem forte--d'esta força persistente, raciocinada e na apparencia placida, como a superficie do mar em dias de bonança. O Oceano, porém, é interiormente agitado pelo _gulf stream_ quente e invisível: tambem ás vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de afflicção que sobem até aos olhos e rebentam em lagrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
É d'estas crises que nasceram os seus versos, porque Anthero de Quental não _faz_ versos á maneira dos litteratos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como solluços e agonias. Mas, apezar d'isso, é requintado e exigente como um artista: as suas lagrimas hão de ter o contôrno de perolas, os seus gemidos hão de ser musicaes. As faculdades artisticas geradoras da estatuaria e da symphonia são as que vibram na sua alma esthetica. A noção das fórmas, das linhas e dos sons, possue-a n'um gráo eminente: não já assim a da côr nem a da _composição_. Aos quadros chama _paineis_ com desdem, e por isso mesmo tem horror á descripção e ao pittoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjectivo. A sua poesia é esculptural e hieratica, e por isso phantastica. É exclusivamente psychologica e dantesca: não pode pintar, nem descrever: acha isso inferior e quasi indigno.