♦DEPOIS♦ 1. Como Sussurros

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"É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
Alguns lamentos,
Muitas espadas"
(Eugênio de Andrade)


Evangeline observou o brilho da lâmina pela vigésima vez. Era reluzente, e brilhava a baixo do sol escaldante de janeiro.

Observou mais uma vez o formato alongado com o punho pequeno que facilmente se adaptava na palma de sua mão, como se adaga tivesse sido feita especialmente para ela. Arqueou as sobrancelhas ruivas. Era muito bela, e tinha de haver um jeito de fazê-la se afundar no tronco da árvore. O tronco já riscado e cheio de arranhões a dois metros dela. O escolhido do dia para lhe auxiliar com seu treino de arremesso de facas. Seus pais viviam dizendo-lhe que o exercício era simples, porém, encontrava dificuldade em encontrar a simplicidade entre os erros que a atrapalhavam a cada novo arremesso fracassado.

A Fazenda Travis brilhava em tons de verde a baixo dos mesmos raios solares, e a impressão que Evangeline tinha ao correr os olhos pela grama verde e selvagem que descia pelas encostas e colinas, era que o ar tremeluzia de encontro ao chão fervente, criando ondulações e distorcendo a paisagem. Mas ela não se importava com o calor. Se importava apenas, em se especializar. Queria ser tão boa em arremesso, que sonhava em um dia ainda sair por aí correndo e colhendo frutas das árvores mais altas apenas atirando facas. Queria ser uma boa Guerreira. Queria ser invencível.

E mais importante: queria acabar com cada Fightwade que ousasse atravessar seu caminho.

― Uma dama e uma adaga? Qual foi a última vez que vi as duas coisas em uma mesma cena? ― a voz masculina e cheia de vida de George Whate fluiu, vinda do meio das árvores que circundavam a clareira onde Evangeline se encontrava. ― Ah, claro. Ontem.

Logo, sua figura alta se revelou, saída de trás de um dos Carvalhos com aspecto rude, cujos galhos e folhas achatados no alto bloqueavam a maior parte da claridade. Evangeline sorriu para o amigo, rapidamente percebendo as botas marrons de montaria e o chicote em uma das mãos. Seu cavalo deveria estar escondido em algum dos mosteiros perto da fazenda, evitando que a presença de George fosse detectada no perímetro da propriedade Travis. Apesar de ser seu melhor amigo, George respeitava a imagem de Evangeline, que poderia ser rapidamente degradada se seu nome fosse anexado ao nome de algum outro garoto no meio de boatos pela Vila. Mesmo que ambos tenham crescido juntos, nem todos achavam que aquela pareceria era amigável, inocente e sem culpas.

― George. ― Evangeline sorriu, jogando os cabelos vermelhos para trás dos ombros, cobrindo o espartilho do vestido cor de vinho. ― Chegou cedo hoje.

George sorriu, dando de ombros e retirando as luvas de montaria, seus olhos cor de caramelo quase cobertos por baixo do cabelo castanho claro, o lábio inferior, maior que o superior lhe dando aquele ar infantil que Evangeline tanto gostava de apontar.

― Precisei passar na padaria, e também precisava encomendar mais feno. O que diz que hoje também terei que falar com seu pai. ― ele explicou, levantando as sobrancelhas dois tons mais escuras que o cabelo, seus olhos se dirigindo decepcionados para o tronco arranhado ― E pelo que vejo, sua habilidade com as facas continua tão ruim quanto estava ontem. Quero dizer, decadente.

Evangeline cruzou os braços, erguendo as sobrancelhas.

― Como se você fosse melhor que eu. Quantas facas conseguiu acertar ontem? Uma?

― Mas eu acertei! ― ele sorriu novamente, apontando a adaga na mão da garota ruiva ― E isso quer dizer que sou melhor nisso que você, mesmo sendo um simples terreno.

Evangeline deu de ombros, se voltando para o alvo novamente.

George era a única pessoa que sabia a verdade sobre ela e sua família. E era bom poder contar certas coisas e dividir certos segredos com alguém. Até onde sabia, aquilo era proibido, mas não havia como O Conselho saber. Afinal de contas, George tinha toda a sua confiança, e Evangeline sabia que se dependesse dele, ninguém nunca iria saber. Como ambos haviam crescido juntos, surgiu uma hora inevitável em que George, como garoto, se dera conta de algumas coisas incomuns na amiga, como o fato de ela ser muitas vezes mais forte que ele. Aconteceu quando ambos tinham apenas nove anos de idade. Disputavam uma caixa de biscoitos de chocolate em meio a uma corrida, quando "sem querer", Evangeline acabou por lhe quebrar o braço. Depois do episódio, ele passou a notar a precisão que a amiga tinha com os reflexos, até que percebeu que ela tinha mais que apenas algumas diferenças anormais: ela tinha poderes.

O Último Filho _ Ritos do Entardecer I _ DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora