Precisamos Falar Sobre o Verão - II

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Chego no quiosque de Abdul mais tarde do que o normal — procurando evitar Vitor e a garota hippie, só me embrenho na trilha depois das sete da noite, o sol ainda brilhando laranja no céu.

— Tio Ab — surjo por trás do homem atarracado com sua camiseta branca impecável habitual, assustando-o.

— Ai, menino — ele reclama, quase arremessando uma prancheta sobre o garçom em treinamento — Infiel, o que é agora?

— O Vitinho estava por aqui? — pergunto, rindo. Abdul sempre me chamou de Infiel, desde a minha primeira vez no quiosque, quando chamei Meca dessa maneira pensando que era um xingamento para os muçulmanos.

— Aquele menino — resmunga ele — Veio aqui com a Parvati para pedir só um suco verde.

— Quem? A garota hippie? — franzo a testa.

— Ela mesma — entoa tio Ab, com uma falsa expressão de paciência — E você, o que veio fazer aqui de novo?

— Sei que você adora minha presença, as vendas aumentam — pisco, fazendo-o rir.

— Você não aumenta minhas vendas em um real sequer, com essa cara de coalhada azeda — Abdul dá tapinhas carinhosos em meu ombro — Mas pode ficar aqui, quem sabe você não arranja um bom casamento? Quero acreditar que meu Ahmed já está a caminho disso — finaliza ele, franzindo a testa e se afastando para orientar um garçom.

"Claro que sim" — penso, caminhando em direção ao rochedo maior, onde há uma aglomeração de pessoas para ver o finalzinho do pôr do sol. A luz difusa dourada e laranja fogo ainda permanece por alguns momentos, antes de que o céu comece a se tingir de azul e roxo escuro; e uma roda se forma ao redor de um garoto que toca violão.

— Gosto muito de te ver, Leãozinho, caminhando sob o sol. Gosto muito de você, Leãozinho — me sinto um intruso de camiseta nerd esquisita em meio a todo esse povo descolado e hippie. Uma menina ao meu lado usa vários colares feitos à mão ao redor do pescoço, e o garoto que toca possui um rabo de cavalo respeitável.

Só uma pessoa aqui parece tão deslocada quanto eu, e perco o ar ao observá-la. Ela usa um vestido de tecido claro, estampado com pequenas raposas, tem o cabelo preso em um coque e usa batom escuro em seus lábios, que possuem o formato de um pequeno coração. Ela parece conter mais inocência do que todas aquelas pessoas, com os olhos bem arregalados na direção do violão com uma expressão que não consigo decifrar.

Em um impulso, consigo me levantar e dar a volta na roda sem chamar a atenção dos presentes.

Para desentristecer, Leãozinho, o meu coração tão só. Basta eu encontrar você no caminho — cutuco seu ombro, tentando pensar o por quê de estar realmente fazendo isso. Ela se vira, surpresa, mas levanta e se afasta do rochedo sem que eu peça, e caminho atrás da garota.

— E então? — ela cruza os braços com um olhar penetrante, contrariando sua aparência delicada.

— Ah... Você gosta de Caetano Veloso? — sorrio de boca fechada, sem graça.
Droga de impulso.

— Na verdade, não — ela levanta uma sobrancelha — Quem me pergunta isso?

— André, também conhecido como Infiel, Coalhada Azeda ou Tio Camarão — digo, me arrependendo imediatamente — E quem me responde? — emendo.

Precisamos Falar Sobre O VerãoOnde histórias criam vida. Descubra agora