Parte 1

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Marta gostava de se exibir para homens na rua. Não quaisquer homens. Os sujos. Os suados.

Um fetiche incontrolável que surgiu desde que leu e assistiu "A Dama do Lotação". E o fez dúzias de vezes. Sonhava em se entregar a esses personagens comuns que cruzavam seu caminho.

Marta não era linda. Aos 44 anos, tinha feições muito duras, marcantemente masculinas, mas tinha um corpo que os "seus homens", como os tratava, achavam de "parar a obra". A cintura fina e os quadris bem largos lhe valiam muitas e muitas cantadas baratas, sujas; sórdidas, por vezes.

Gostava de ser acochada nos ônibus, sentir aqueles corpos transpirarem aquele suor quente, notadamente fedido contra o seu corpo inteiro, sentir seus membros rígidos contra suas nádegas volumosas. Mas isso não a excitava tanto quanto parar ao telefone celular em frente a uma obra e deixar suas costas à exibição popular. Aquele certo frenesi entre os trabalhadores e as palavras do mais baixo calão pronunciadas a enlouqueciam. Imagens das mais perversas pululavam sua imaginação. Em sua cabeça, havia muita vontade de se entregar àqueles homens. Às vezes, a mais de um ao mesmo tempo.

Mas fora covarde até aquela tarde.

Marta é passado agora, depois que ele passou por sua vida.

Carlos tinha vontades ocultas. Secretas.

Teve uma vida ordinariamente comum. Mas sempre teve desejos com os quais não sabia lidar. Preferia escondê-los. Não era difícil em sua vida comum.

Operário de obra, 40 anos, nunca havia se casado. As mulheres que passavam em sua vida lhe levavam sempre dinheiro. Isso era importante para ele de uma forma ímpar. Pagar pelo sexo apaziguava aquelas alucinações. Pagava sempre antes e sempre com o mesmo ritual. Assim aqueles ímpetos desapareciam. Frequentava as mais baixas zonas de meretrício. Era o suficiente. Nunca por muito tempo, precisava pagar "àquelas vagabundas", como dizia para o espelho. Os mais próximos achavam que ele poderia ser gay. Ou um tipo de assexuado, já que nunca fora visto com companhia feminina tampouco masculina.

Não era homossexual mas decidira que não se relacionaria com mulher alguma. Não sabia se poderia controlar aquilo. Sua opção, quase celibatária, poderia ser considera honrosa, frente ao que se passava em sua alma atormentada. Sequer acreditava em Deus. O quê poderia tê-lo ajudado, se tivesse associado tudo aquilo ao Diabo. Em vez disso, sabia que era dele. Que era ele. Os pensamentos eram originais e próprios dele. Todas aquelas obsessões sexuais e sádicas lhe pertenciam.

No entanto, como em um passe de mágica, ao esfregar suas notas amassadas no corpo de seu pedaço de carne contratado da noite, ia se acalmando. Entregava o dinheiro à aviltada profissional e lhe fazia um papai-mamãe dos mais simples. Não gastava cinco minutos. Apenas para se aliviar. Nada mais. Não dizia até logo sequer. Jogava o preservativo usado em qualquer canto. Vestia-se e rumava para a tranquilidade de sua pequena casa naquele morro pacato.

Isso antes de Marta.

Após mais uma de suas exibições de gala em frente a uma grande obra, por voltas das cinco da tarde, Marta rumou para o ponto de ônibus. Carlos não havia visto o show. Estava se trocando, no momento. Em seguida, se arrumou e rumou também para o ponto. Estava desligado. Marta o vira saindo pelo portão. Notou logo seus braços fortes. Sentiu-se até um pouco fraca à medida que se sentia mais úmida.

O ônibus para no ponto. Carlos não notou Marta entre a multidão que aguarda as diversas conduções. O seu estava lá. Sentia-se premiado.

Em alguns minutos estavam lado a lado. Aquele não era o ônibus que Marta esperava. Mas ela estava lá. Possuída por suas vontades. Mas dessa vez era mais forte. Sentia-se o próprio demônio. Queria ultrapassar o último limite. Queria aquele homem dentro dela. De todas as formas que suas cabeças pudessem imaginar. Não, Marta não sabia que na mente de Carlos havia tantos pequenos filmes de cenas tão violentamente perigosas. Mortais.

Carlos estava cansado como um leão que acabara de comer um antílope. Toda a volúpia de Marta ainda não havia disparado seu gatilho. Estava especialmente afastado de seus pensamentos torpes aqueles dias. Mas uma pressão contra sua mão que segurava um dos bancos do ônibus o fez balançar a cabeça de leve, despertando-o para a realidade à sua volta.

Não havia lugares para se sentar, mas não havia também tantas pessoas assim. O disparo do gatilho fora dado. Marta se segurava em um daqueles canos de metal que sobem dos bancos até o teto dos ônibus. Permitia que sua vagina, sob aquele vestido vermelho de tecido tão fino, tocasse as costas da mão de Carlos de quando em quando; a cada chacoalhar daquele carregador de gente comum. Aqueles dois não eram como todos os outros que ali estavam. Se bem que a isso nunca se poderá afirmar.

Em pouco tempo a mente de Carlos fervia enquanto sua mão fazia pequenos gestos de afastamento para trás. Podia sentir claramente a forma dos grandes lábios da genitália de Marta. Não havia nenhuma lingerie entre as costas de sua mão e aquela umidade abundante. Só aquele vestido.

Aquele maldito vestido habitara todo e qualquer pequeno filme mental produzido pelas obsessões de Carlos. Um fino e solto vestido vermelho. Não tão justo. Não tão curto. Era aquele, ele não tinha dúvidas. A hora havia chegado. O futuro dos dois, desenhado nas imagens talhadas nos pensamentos de Carlos, era inexorável.

Marta mantinha os olhos fechados. Era toda desejo. Uma sensação perene de orgasmo se aproximando exigia uma concentração inimaginável para que não deixasse seu corpo explodir e terminasse em gritos enlouquecidos dentro da lotação. A própria palavra lotação bradava em seus pensamentos agora. Todas aquelas linhas rodriguianas. Todas aquelas imagens de Neville de Almeida. Tudo aquilo agora era real. Era o "seu" mundo real. Todo aquele furor, que latejava desde entre suas pernas e se espalhava por seu corpo até toma-la por inteiro, era real. Não podia ser diferente. Sentia-se completa. Não, ainda não. Faltava se entregar àquele homem. Àquele sujo-imundo desconhecido que fedia a um suor nauseante mascarado por uma lavanda barata borrifada sobre uma pele mal lavada em um banho recente.

Nenhuma palavra. Por quase uma hora aquilo prosseguiu. Entravam e saiam pessoas e eles estavam lá. Carlos puxa aquela fina corda de nylon e indica que vai descer no próximo ponto. Marta não faz ideia de onde está. Pouco importa. Vai seguir aquele macho até onde for necessário.

Carlos passa por detrás de Marta e a faz sentir o que na cabeça dela é o que a espera em breve. Marta enlouquece com o que sente em suas nádegas. Pensou que ele foi agraciado pela natureza. Ele caminha para a porta. Ela reluta por um instante. Instinto de sobrevivência? Segue seu desejo. Segue Carlos. Segue seu destino que acabara de ser traçado em outra mente.

Carlos sequer olha para trás. Caminha em direção ao cubículo em que vive. Não é longe do ponto de ônibus. Existe apenas uma ladeira o separando da porta de casa. E de suas coisas. As coisas que não saem de sua mente.

Marta agora o segue da forma mais irresponsavelmente irresoluta que pode haver. Não havia espaço para dúvida naquele mar de excitação e desejo. Seu corpo treme por inteiro. Suas pernas só respondem aos comandos dos instintos de seu olfato que segue o odor daquele reles operário. O reles novo dono da sua vida.

Carlos não olhara uma vez sequer para trás. Se ela decidisse entrar lá, que fosse por sua própria conta. A partir dali ela seria inteira sua. Somente sua. Uma única vez sua. E de mais ninguém. Girou lentamente a chave depois de passar pelo inferno para introduzir a chave, dada a tremedeira de suas mãos.

Entrou. Fechou a porta. Não a trancou. Em menos de um minuto, viu a maçaneta girar. Marta e o vestido que acompanhou seus pensamentos por uma vida estavam lá. Parados ao lado da porta entreaberta. Ele apontou para a porta sutilmente com uma das mãos. Marta entendeu o recado e sem relutar fechou a porta. Trancou-a. Trancou-se no mundo de Carlos, seu escolhido algoz que lhe seria anônimo até o fim.

Continua...


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(Essa é a primeira parte de cinco; em breve, a segunda estará postada)

(Foto: "Belo Horizonte, mg. Brazil.", em 14/11/11. © Filipe Soares Dilly - https://www.flickr.com/photos/filipe_dilly/ - Creative Commons 2.0 licensing)

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