Voltou para a cama. Marta seguia de olhos fechados. Seguia deslumbrada. Esperava sem mais nenhuma ansiedade pelo que viria em seguida. Agora tanto fazia. Depois daquilo que houvera, só lucraria. Era um bom pensamento. Não era verdade. Carlos colocou seu "kit" no colchão. Tocou o rosto dela levemente. Ela sorriu. Ele também. Pegou a fita, puxou um pedaço. O barulho fez Marta abrir os olhos. Ela viu a cena, mas ficou confusa. Não entendeu bem a ideia por trás daquilo. Carlos não conseguiu arrancar a tira com os dentes. Calmamente desenrolou o pano preto, pegou uma tesoura e cortou o pedaço. Marta não conseguiu identificar o que mais havia ali, mas seu olhar agora era um misto de incredulidade e medo. Ia perguntar a ele que porra ele estava fazendo. Não houve tempo. Carlos colou a fita em sua boca.
Saiu em direção à cozinha. Marta ronronava em súplica. Tentava em vão se libertar dos pedaços de mangueira que a mantinha amarrada. Em vão. Isso só lhe trazia dor. Mas como ia poder pedir a ele para parar e não fazer seja lá o quê ele estivesse planejando? Não estava mais a fim. Carlos voltou com a mangueira. Marta se debateu, mas não pôde evitar ter seus pés amarrados à grade da parte final da cama. Não estava muito esticada, o que permitia ainda algum movimento. Nenhum que a pudesse ajudar, no entanto. Agora suas pernas estavam levemente dobradas e a abertura entre elas era a suficiente para receber sexo oral ou ser penetrada. Foi isso que seu futuro algoz idealizou quando prendeu seus pés.
Olhos debulhados em lágrimas. Assim estava Marta. Olhos assustadoramente felizes. Assim estava Carlos. Ela agora apenas acompanhava cada movimento dele. Com uma angústia nunca antes sequer imaginada. Estava ainda entregue, mas agora não mais por opção. Era uma tetraplégica muda. Como se fosse alguém que perdeu 100% dos movimentos, mas ainda ouve, vê e, principalmente, sente. No entanto, não consegue emitir nenhuma opinião. Assiste Carlos como que pelo buraco da fechadura. Chora. Reza. Emite sons de súplica. Carlos ignora. Está envolto em seu próprio fascínio pela sua coleção bizarra que montou ao longo do tempo. Há tempos não abria o pacote que foi montando a cada sonho. Fazia aquilo sem ter a perspectiva de que aquilo um dia fosse se tornar realidade. Tocava lentamente deslizando a mão sobre cada um dos seus objetos de autorrealização. Era chegado o dia.
A tesoura já havia sido revelada à Marta. Agora o ritual de Carlos incluiria uma apreciação muda de tudo que havia lá. Ele estava praticamente em estado de autismo; afastado do mundo. Erguia cada uma das peças, movendo-as no ar. Uma por uma. Um desfile doentio para sua vítima assistir. Um rolo de fio de nylon para pesca. Um vibrador preto bem grosso e comprido. Um bisturi médico. Um alicate de unha. Uma chave de grifo. Um pequeno saco plástico com agulhas de costura. Outro pequeno saco plástico com sal. Um vidro escuro de remédio, contendo um líquido que não identificável, pois não havia rótulo. Uma pequena solda elétrica. Um revólver calibre trinta e oito. Seis balas. Um arsenal que nunca teria se desnudado se Marta não tivesse entrado naquela casa. Se ela não tivesse escolhido aquela obra naquele dia. Se não tivesse entrado naquele ônibus.
A sensação de pavor da pobre mulher inundava o casebre. A felicidade do gozo farto havia partido. Há pouco tempo, na verdade, mas parecia distante séculos naquele momento. Na mente de Marta um rio de questionamentos. Seu corpo cuspia suor mesmo em uma temperatura amena; fazia quase frio. Cada parte de seu corpo tremia. Seus poros inundados. Não tinha certeza de nada, mas tinha certeza que aquilo era um engano, uma brincadeira e já acabaria. Sabia que não. Rezava que sim.
Carlos ligou a solda elétrica na tomada e se dirigiu muito carinhoso à Marta (ele era genuinamente sincero naquele momento):
— Você nunca se divertiu tanto quanto vai se divertir hoje. Já, já, começamos. Preciso desse brinquedo aqui bem quente.
Uma tormenta alimentando o pânico de Marta, que se sacode o mais que consegue. Precisa se libertar. Sente que seu pulso direito escorregou um pouco para baixo. Força o quanto pode. Fere-se. Volta a tentar gritar. Em vão. Ele está no controle. O que fazer agora? O que vai acontecer? Um milhão de pensamentos por segundo. O cérebro da infeliz escolhida parece frigir em antecipação à tragédia iminente.
Um ganido abafado explodiu levemente pelo ar. Mal foi percebido. O maior grito que aquele bairro já havia visto simplesmente não conseguiu furar a fita prateada que severamente cobria a boca de Marta. Havia agora uma estrela desenhada em sua perna direita. Uma estrela desenhada com a ponta aquecida do ferro de soldar.
Estrelas e mais estrelas. Em algum momento, Carlos desenhava muitas estrelas. As estrelas o levavam para outra dimensão. As estrelas o livravam daquelas memórias que um dia se esconderiam no fundo da sua alma. Em neurônios muito atuantes, mas silenciosos. Assim, as surras, o som dos repetidos estupros de seu padrasto em sua mãe, as torturas físicas e mentais simplesmente desapareciam. Cadernos e cadernos cheios de estrelas. Estrelas desenhadas na madeira do barraco. Nas telhas de amianto. No seu coração. Dinheiro esfregado na cara de sua mãe. Isso e cusparadas. Por que ela aceitava aquilo. Por ele. Tinha que ser por ele. Não havia mais nada. Tudo aquilo só era possível porque ela queria que ele tivesse uma condição melhor. Ele carregou aquela culpa pela vida sem se dar conta. Agora era ele o algoz em uma espécie de rendição doentia. O espírito daquelas desventuras o tomara de vez. Abafou-o por anos, mas agora era ele o dono do cuspe. Ele era o senhor, o próprio poder.
E ali, o corpo de Marta. Ela não era mais do que isso para ele. Todo desejo e luxúria daquela mulher agora lhe presenteariam com um grand finale. Se desejado ou indesejado, era difícil supor. Sempre quisera ser possuída por aqueles homens. Agora, o pior deles a usaria como válvula de escape. Sem escapatória para si mesma, ela apenas sonhava em desmaiar. Desejava morrer.
Continua...
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(Essa é a terceira parte de cinco; em breve, as últimas duas sairão dessa nova revisão - estou muito ansioso também, garanto!)
(Foto: A ponta de um ferro de soldar - "Project 366 #60: 290216 A Hot Tip", © Pete (https://www.flickr.com/photos/comedynose/) Creative Commons Licensing 2.0
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Vontades Ocultas
Kort verhaalMarta gostava de se exibir para homens na rua. Carlos tinha vontades ocultas. Marta é passado agora, depois que ele passou por sua vida. Carlos não notou Marta entre a multidão. Marta rumou para o ponto de ônibus. Na mente de Carlos havia tantos p...