Eu estava sobre o colo de Pircy Almond quando ele tombou de borco no chão. Havia acabado de suicidar-se com um tiro no crânio.
Nunca gostei de Pircy. Ele sempre me pareceu o mais fraco dos Almond. Porém, há anos, eu ansiava pelo nosso encontro, o qual, aliás, jamais poderia acabar bem.
Passei toda minha existência trancado em lugares escuros, que acumulavam poeira. A costura começou a soltar-se e fungos mancharam a minha capa, outrora imponente. A única atenção que recebi de Vera, a mulher que me violentou milhares de vezes nesses vinte anos de existência, foi ser embalado em um de seus lenços de seda que, como ela, cheira a álcool e tabaco.
Vera não é uma mulher fácil. Odeio-a desde o momento em que suas mãos pequenas de dedos alongados, com unhas curtas, tocaram minhas primeiras páginas.
Como livro, tenho a obrigação de reconhecer sinais de inteligência, aptidão, disciplina e outros componentes de uma mente promissora. Logo, posso garantir: Vera Almond tem a mente mais perturbada e estúpida que alguém como eu poderia ter o desprazer de conhecer.
No entanto, por mais que a odiasse, eu pertencia a ela. Não me recordo de minhas origens. Sou uma obra sem título e sem autor, recheada de uma história funesta, salpicada de elementos que os de pensamento mais banal chamariam de amor.
Pircy foi um dos poucos que não se deixou enganar pelas minhas personagens de boa lábia, damas finas e castas, cavaleiros honrados. Tampouco se iludiu com as promessas de cada linha minha. Pelo menos até o dia de hoje, por mais que o achasse fraco, eu realmente tinha fé em Pircy. Mesmo sabendo que ele poderia pôr tudo a perder, eu acreditava que ele resolveria o impasse, salvaria sua família da ruína, casar-se-ia com a Srta. Force, e, com um pouco de sorte, chegaria ao meu autor, meu pai. Se não fosse esperar demais, talvez eu fosse até aguardado, pelo meu criador, como um filho perdido que regressa ao lar. Meu pai poderia ficar tão feliz, poderia multiplicar-me, poderia espalhar pelos quatro cantos do planeta as linhas tortuosas de seu raciocínio fugaz.
Pois foi o desejo da multiplicação que se enraizou em mim a partir do momento em que Vera leu-me pela primeira vez. Acompanhei freneticamente sua mente trabalhando para compreender-me. A princípio, fiquei horrorizado com o estrago que eu era capaz de fazer. Depois, deliciei-me com as suas angústias perante minha história. Foi uma sensação maravilhosa. Nesses vinte anos, Vera enlouquecia enquanto relia neuroticamente as mesmas seiscentas páginas. Mesquinha como era, nunca contou sobre mim a ninguém, muito menos permitiu que outra pessoa abrisse sua mente para todas as minhas possibilidades. Ela gostava de ficar a sós comigo, pelos cantos da casa; às vezes até falava comigo. Nos últimos anos isso aconteceu muito. Eu adorava quando ela gritava com as personagens como se elas fossem vivas, inquirindo respostas ou atitude das pobres criaturas.
Por mais que eu gostasse de meu horror interno, nunca acreditei que minhas personagens pudessem responder às histerias de Vera. Descobriria mais tarde que estava enganado. Aliás, eu era um completo ignorante sobre os meus reais valores, a minha essência. Não saber nada sobre o seu criador pode transtorná-lo a tal ponto de surgir a ânsia de morder até sangrar os dedos finos da medíocre Vera.
Estava sufocado por ela. Sentia uma necessidade crescente de gritar palavras que libertassem minha alma aprisionada, confinada, condenada àquela gaveta cheia de ácaros. Ah, se eu pudesse berrar os meus horrores e compartilhá-los com o resto do mundo...
Entretanto, não existiam meios para tal liberdade. Era um condenado e no momento tudo poderia acabar por conta do fraco Pircy Almond.
***
Eu e Pircy tombamos no chão. Espalhei-me aberto quase na metade. Podia ver que hoje seria um dia de chuva. O céu estava carregado, com nuvens escuras, e ventava forte. Minhas páginas esvoaçavam tão rapidamente de um lado para o outro que eu tive certeza de que a costura velha não aguentaria por muito tempo. Logo, eu estaria sangrando tanto quanto Pircy.
Será que demorariam a encontrar o corpo desse estúpido? Eu teria que ficar irremediavelmente ensopado, correndo o risco de não haver cura para a minha prosa, devido às manchas que a água provocaria em minhas páginas? Ou eu escaparia com vida e em situação mil vezes melhor do que a de Pircy?
Comecei a sentir as primeiras gotas caírem pesadas sobre mim. Então eu acabaria dessa forma? Impune? Inacabado?
Para o meu grande alívio, alguém se aproximava. Era uma mulher. O passo leve era inconfundível. Esperei pelo grito de horror, mas este não veio. Esta moça jamais gritaria como outra qualquer. Eu mal a conhecia, mas sentia-me íntimo daquele corpo, daquela mente.
Florence Force aproximou-se do corpo de Pircy. Fiquei extasiado, o coração que eu não possuía explodia de ansiedade para que suas lindas mãos brancas com unhas escarlates tocassem-me.
Porém, Florence preferiu acolher primeiro o corpo de Pircy em seus braços. Ela chorava em silêncio e eu senti a raiva queimar em mim. Alguns minutos depois ela me deu atenção. Tirou-me do chão e fechou minhas páginas.
O toque dela era o melhor que uma criatura como eu poderia sentir. A inteligência e agudeza de sua mente extravasavam por sua respiração, pelos poros de sua pele. A Srta. Force era um enigma que eu ansiava por desvendar, desnudar, devorar. Venderia cem páginas para que tivesse nascido daquela mente por meio de suas mãos suaves.
Mas algo devia estar errado. Ela me encarou com desdém antes de colocar-me debaixo do braço e rumar para casa. Curiosamente, eu não me sentia mais sortudo do que Pircy neste momento.
Florence morava no topo da colina. Sua casa tinha janelas e ferragens vermelhas, o que sempre me encantou. No entanto, isso agora me apavorava, pois seus passos não pisavam o chão de terra com a leveza de antes e ela não estava perto de casa, mas sim no quintal das irmãs Prudence. E havia fúria em seu andar.
Eu senti ainda mais terror ao notar a presença de Alfred Almond, irmão mais velho de Pircy. Ela estava furiosa demais para percebê-lo. Quis avisá-la da presença de Alfred. Apesar de não conhecê-lo tão bem quanto Pircy, conhecia-o o suficiente para temê-lo; conhecia a sua violência, a sua fúria incontrolável.
Então ali estávamos. Florence atirou-me sobre a mesa de centro da sala. Cai desmantelado, humilhado pelo seu desprezo.
Foi só neste momento que percebi que ela havia trazido consigo o revólver de Pircy.
Desesperei-me. Quis gritar, urrar, agarrá-la – qualquer ato que a impedisse de cometer o desatino que eu sabia que faria. Até desejei que Alfred entrasse na casa e lhe desse uns bons tapas na face para que aquela idiota não concluísse sua ideia suicida.
Mas não houve tempo. Florence encostou a arma na lateral do crânio e apertou o gatilho sem nem ao menos piscar.
Seu corpo caiu antes que o estrondo chegasse ao fim. Seus olhos abertos fitavam-me como se ela estivesse se divertindo.
Pircy e Florence em menos de sete meses. Eu lamentava a morte da moça.
Alfred entrou na casa, desesperado pelo som do disparo. Foi a primeira vez que o vi chorar. Colocou-me debaixo do braço como fizera a jovem. Temi que ele também pegasse a arma e a carnificina continuasse, mas ele era mais forte. Saiu da casa de cabeça erguida, no meio daquele caos. Não tive nem chances de especular sua mente.
Não nego minha culpa. No entanto, prefiro contar-lhes tudo em detalhes antes da derradeira sentença.
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O Órfão
RomanceUm livro gasto, sem autor e título presencia o suicídio de um jovem casal. Esse é o ponto de partida de O Órfão. Quando Pircy Almond, morador da pacata Fancywood dá um tiro na própria cabeça, a obra fica jogada ao chão e é recolhida pela bela Flore...