Pircy mal ousava respirar. Tinha medo de que, ao se mexer, espantasse Florence dos seus braços e, apesar de totalmente confuso, ela tinha se encaixado tão bem ali que parecia que era o lugar ao qual ela pertencia.
O jovem rapaz não estava entendendo quase nada. Há mais ou menos uma semana, tinha conhecido aquela garota enquanto ela tentava se matar; ela, na verdade, tinha-o salvado de morrer congelado por bancar o herói. Logo depois, tinha sido ríspida, dizendo coisas sem sentido - como vínculo e demônios - e agora que eles viriam atrás dele.
— Florence, o que está acontecendo? — Pircy ainda faria aquela pergunta muitas outras vezes. — Do que você está falando?
Ela tinha pedido para que ele não a deixasse ir. Ele não queria mencionar aquilo. Tinha sido perfeitamente capaz de entender do que ela estava falando. Ela não queria morrer, não de verdade.
— Pircy... — ela encarou os olhos dele, eram castanhos claros, estreitos e brilhantes por trás dos óculos. — Eu não quero que nada aconteça a você... precisa me prometer! — o tom dela ficava cada vez mais urgente. — Você... precisa prometer. — repetiu ela, agarrando-o pelos ombros. — Coloque sal na soleira de sua porta à noite e também na janela. Não saia por Fancywood quando escurecer... e não fale a ninguém sobre mim.
As instruções não pareciam fazer sentido. Na verdade, eram bem bizarras e por um segundo o rapaz sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo, como se tivesse se metido em uma enrascada, em algo perigoso. Quase toda Fancywood já tinha ouvido falar das novas moradoras da cidade e começavam a comentar sobre elas.
— Não pronuncie o meu nome todo. Por favor, você tem que prometer. — insistiu ela.
— Tudo bem, tudo bem... mas sal? Isso é para alguma espécie de bruxaria?
Ele se afastou dela desconfiado. Ela não estava brincando, mas ao mesmo tempo era impossível acreditar que ela estivesse mesmo mandando ele botar sal na soleira da porta e no peitoril da janela. Pircy tinha lido muitos livros. Sabia que contavam essa história de sal afastar demônios. Mas ele nem sequer acreditava que esse tipo de coisa pudesse existir.
— Pircy, por favor, apenas faça o que estou dizendo. — os olhos dela pareciam brilhantes de lágrimas, o que assustou o jovem Almond, pois nunca uma garota havia chorado por ele, como suspeitava que Florence estivesse fazendo nesse exato momento.
— Ei, ei... — ele a tomou nos braços novamente. — Não estou entendo nada, mas se você está dizendo que é importante vou esvaziar os saleiros de casa.
Alguns minutos se passaram. Eles permaneceram abraçados, apesar da lareira e do chá, Florence estava muito fria, gelada como se tivesse acabado de voltar do lado de fora.
— Você não está com frio? — perguntou ele, mudando de assunto e passando as mãos pelos braços dela, o casaco era grosso, mas mesmo assim ela não parecia aquecida.
— Está tudo bem. Precisamos ir agora. — ela se levantou de repente.
O rapaz resolveu não fazer mais perguntas. Eles refizeram o caminho até o carro. Havia nevado tanto que era difícil caminhar em meio às árvores, sem ficar com neve até a panturrilha. Ao alcançarem o carro, Florence não demonstrou querer voltar dirigindo e Pircy assumiu o volante ainda sem dizer nada.
Ela passou todo o trajeto até sua casa, no topo da colina, olhando para o lado de fora e nem se importou com a música do The Black Keys que saía das caixas de som. Caia muita neve, as ruas estavam todas brancas e o rapaz precisou dirigir com o máximo de cuidado, porque os pneus deslizavam feito manteiga. O frio era tão intenso que não havia pessoas pelas ruas.
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O Órfão
RomanceUm livro gasto, sem autor e título presencia o suicídio de um jovem casal. Esse é o ponto de partida de O Órfão. Quando Pircy Almond, morador da pacata Fancywood dá um tiro na própria cabeça, a obra fica jogada ao chão e é recolhida pela bela Flore...