O Viajante

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Próprio de espírito sorumbático, é andar sempre calado: tagarelar é o encanto e a alma da vida.
La Chaussée. Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem A boca. Cervantes, D. Quixote.

O dia 15 de julho de 18é0 era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no interior do Brasil.
Ia o Sol alto em seu percurso, iluminando com seus raios, não muito ardentes para regiões intertropicais, a estrada, cujo aspecto há pouco tentamos descrever e que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter aos campos de Camapuã.
A essa hora, um viajante, montado numa boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira, seguia aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem feitas e em bom estado de conservação.
Tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido.
Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço.
Vinha só e, no momento em que damos começo a esta singela história, achava-se no bonito trecho de caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas léguas da sezonática e decadente Vila de Sant'Ana do Paranaíba
Nesta porção de estrada, ensombrada pelas árvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante arenoso, é firme e parece mais aléia de bem tratado jardim, do que caminho de tropas e carreadores.
Ainda aumenta os encantos daquele lance a inúmera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de pombas de cascavel, cujo bater das asas produz um arruído tão característico e singular.
O nosso viajante, se caminhava distraído e meio pensativo, não parecia, contudo, de gênio sombrio ou pouco divertido.
Muito ao contrário, sacudia as vezes o torpor em que vinha e entrava a cantarolar, ou assobiar, esporeando a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as orelhas com o movimento cadencial da cabeça.Numa dessas reações contra alguma preocupação, disse em voz alta,
puxando por um relógio de prata, seguro em corrente do mesmo metal:
—Às duas horas, pretendo sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio-dia, e tenho tempo diante de mim a botar fora.
Moderou, pois, a andadura que levava o animal e mais ativamente recomeçou a zurzir os galhos das árvores, bocejando de tédio.
Também pouco tempo caminhou só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado num cavalinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor, mostrava ter vindo quase a galope.
Homem já de alguma idade, o recém-chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia, como realmente era, morador daquela localidade.
—Olá, patrício, exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando para Camapuã?
Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:
—Talvez sim... talvez não... Mas a que vem a pergunta?
—Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem sequer o saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater-me nos dentes... que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu sela malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão de falar que vou logo, sem tir-te, nem guar-te, dando à taramela...
A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo.
Notou então a fisionomia alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação.
—Pelo que vejo, disse ele, o senhor gosta de prosear.
—Ora se! retrucou o mineiro. Nestes sertões só sinto a falta de uma coisa: é de um cristão com quem de vez em quando dê uns dedos de pérola. Isto sim, por aqui é casqueiro. Tudo anda tão calado!... uma verdadeira caipiragem!... Eu, não. sou das Gerais, gelaria como por cá se diz; nasci no Paraibana, conheci no meu tempo pessoas de muita educação, gente mesma de traz e fui criado na Mata do Rio como homem e não como bicho do monte. —Ah! o senhor é de Minas? —Gerais, se me faz favor. Batizei-me em Vassouras, mas sou mineiro da gema. Andei ceca e meca antes de vir deitar poita neste país. Isto já faz muito tempo, pois também vou ficando velho. Há mais de quarenta anos pelo menos que sai da casa dos meus pais.
E interrompendo o que dizia, perguntou:
—O senhor também é de Minas?
—Nhor-não, respondeu o outro. Sou caipira de São Paulo: nasci na Vila de Casa Branca, mas fui criado em Ouro Preto. —Ah! na cidade Imperial ?... —Lá mesmo.
—Então é quase de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me batia a passarinha, quando vi o seu rasto fresco na areia. Ai vai, disse eu por vezes com os meus botões, um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Também tocando o meu canivete, tratei de agarrá-lo para não fazer a viagem a olhar para o céu e a bancar. Acha que obrei mal?
—Não, senhor, protestou o moço com afabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos.
—Oh! exclamou o outro todo expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia légua do Leal, torcendo a esquerda e se vosmecê não tem compromissos lá com o homem, far-me-á muito favor agasalhando-se em teto de quem é pobre, mas amigo de servir. Minha tapera é pouco retirada do caminho, e quem vem montado como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos de léguas.
Convite tão espontâneo e amável não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquelas alturas, e trouxe logo entre os dois caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece em viagem.
—Com toda a satisfação irei parar em sua casa, retrucou o jovem. Nunca vi o Leal, pois agora é a primeira vez que cruzo este sertão, e ando de pouso em pouso, pedindo um cantinho de paiol ou de rancho para passar a noite com os meus camaradas.
— Traz então tropa?
—Tropa, não; apenas dois bagageiros que vêm com as minhas cargas e uma besta à destra.
—Olá! o amigo viaja à fidalga, observou o mineiro com gesto folgazão. —Qual!... Bastantes privações tenho já curtido.
—Decerto não as sentirá em nossa casa todo o tempo que lá quiser ficar. Não encontrará luxarias nem coisas da capital, unicamente o que pode ter nestes mundos: quatro paredes de pau-a-pique mal rebocadas, uma cama de vento, bom feijão a fartar, ervas a mineira, arroz de papa, farinha de milho torradinha, café com rapadura e talvez até um lombo fresco de porco.
—Olá! exclamou o moço rindo-se com expansão, vou passar vida de capitão-mor. Não queria tanto, bastava-me...
—O que sobretudo desejo é que tenha comigo o coração na boca. Se não gostar do passadio, vá logo desembacharido. Na minha rancharia pousa pouca gente, porque fica para dentro da estrada... assim, talvez lhe falte alguma coisa; em todo o caso farei pelo melhor . . .
Depois de breve pausa, continuou:
—Mas porém, creio que já é ocasião, agora que nos conhecemos como dois amigos do tempo do Rojão, saber com quem lidamos. Eu, quanto a mim, me chamo Martinho dos Santos Pereira e a minha história conto-lha em duas palhetadas... Sua graça, ainda que mal pergunte ?
—Cirino Ferreira de Campos, respondeu o outro viajante, um criado para o servir. — Obrigado, agradeceu Pereira inclinando-se cortesmente e levando a mão
ao chapéu. Como lhe disse há pouco, minha historia é história de entrar por uma porta e sair por outra. Minha gente não é de má raça, pelo contrário; meu pai, que Deus lhe dê a glória, possuía alguma coisa de seu e deixou aos seus muitos filhos um nome limpo e respeitado. Cada qual de nós—éramos sete—tomou o seu rumo. Quanto a mim, casei muito mocinho e fui morar na Diamantina, onde abri casa de negócio. Depois de alguns anos, uns bons, outros caiporas, morreu minha dona e mudei-me, a principio, para Pinmi e mais tarde para Uberaba. A vida começou a desandar-me de todo, e fiz logo este cálculo: estar tão longe, antes afundar-me no mato de uma boa feita. Vendi minha lojinha de ferragens e internei-me até cá com três escravos. lá doze anos que moro nestes socavões e, palavra de honra, até ao presente não me tenho arrependido. Na minha situação há fartura, e louvado seja! nunca passei necessidade... Não posso por isto queixar-me sem ingratidão. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga-me porém uma coisa: vosmecê para onde se atira?
—Homem, Senhor Pereira, não tenho destino certo. —Deveras? Então esta caminhando à toa?
—Eu ponho-lhe já tudo em pratos limpos. Ando por estes fundões curando maleitas e feridas bradas.
—Ah! exclamou Pereira com manifesto contentamento, vosmecê é doutor, não é? Físico, como chamavam os nossos do tempo de dantes. —É fato, confirmou Cirino com alguma satisfação. —Ora, pois multo bem, cai-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice. —Por quê? —Daqui a pouco saberá... Mas, diga-me ainda... Onde é que vosmecê leu nos livros, aprendeu suas historias e bruxarias? Na corte do Império?
—Não, respondeu Cirino, primeiro no Colégio do Caraça; depois fui para Ouro Preto, onde tirei carta de farmácia.
E acrescentou com enfatuação:
—Desde então tenho batido todo o poente de Minas e feito curas que é um milagre.—Ah! a sabença é coisa boa. . . eu também tinha jeito para saber mais do que
ler e escrever, isto mesmo mulmente; mas quem nasceu para carreiro, vira, mexe, larga e pega, sempre acaba junto ao carro. Com o que, entonces, vosmecê entende de curar?...
—Entendo, afirmou Cirino sem o menor constrangimento.
—Pois caiu-me muito ao jeito na mão; sim, senhor. Estou com uma menina doente de maleitas, minha filha, e por essa causa tinha ido a Sant'Ana buscar quina do comércio; mas lá não havia da maldita e voltava bem agoniado. Ora...
—Trago, interrompeu o outro, muito remédio nas minhas malas. Para sezões, tenho uma composição infalível...
— Já se sabe; entra composição de quina. Deveras é santa mezinha. A pequena tomou a do campo; mas essa pouco talento tem, de maneira que a sezão não lhe deixou o corpo.
—Há quantos dias apareceu o tremor de frio? perguntou o intitulado doutor. —Faz hoje, salvo engano, dez dias.
Até agora era uma rapariga forçada, sadia e rosada como um lambo; nem sei ate como lhe entrou a maleita no corpo. Ninguém pode fiar-se na tal Vila de Sant'Ana; é uma peste de febres. Eu bem a não Queria levar até lá: mas ela pediu tanto age consenti! Demais como era para ver a madrinha, uma boa senhora, de muita circunstância, a mulher do Major Melo Toques. .. Não conhece?
—Pois não.
—E dá-se com o major? perguntou Pereira para abrir novo campo à garrulice.

Inocência - Visconde de TaunayOnde histórias criam vida. Descubra agora