Memória-Cachê

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     Este é o quarto dia de uma nova vida.

     Na verdade, tudo começara num sábado. A bem da verdade, várias de suas coisas começaram num sábado, ele próprio viera ao mundo num sábado. O que lhe faltava era memória suficiente, o que lhe faltava era memória suficiente, não... Não, não lhe faltava memória suficiente, apenas uma ajudinha quando não encontrava as cartas escondidas dentro da caixa de sapatos no maleiro de um armário adquirido em carnês eternos de loja de liquidação. A sua memória era parecida com os pedaços de filme espalhados em Reconhecimento de Padrões, cultura nipônica de passar tempo quando já não se consegue voltar para casa após um estafante expediente.

     De sua memória, a instalada na placa, vinha-lhe a imagem das janelas de barracos ao longo da Fernão Dias, lá pela altura do Jaçanã, de Guarulhos, demorou perto de 15 anos passando por ali para identificar quando começava um e terminava o outro. O primeiro grande sinal de que ventilava Guarulhos eram os gigantescos aviões das linhas estrangeiras endereçando-se à cabeceira da pista. Sempre olhara extasiado como uma montoeira de aço aparafusado, pesando o que pesava, conseguia se manter no ar. Um dia, aprendera num canal de televisão de que aviões precisam de sustentação, de que aviões precisam de sustentação, de que aviões precisam de sustentação, sim... Enfim lembrara de que aviões precisam de sustentação para não dar com os burros n'água. Não tinha medo de avião, apenas um possível desconforto, por isso preferia ir de ônibus até porque era mais barato.

     Houve tempos em que tanto a ida quanto a volta eram baratas. O troféu de seu envelhecimento, além do joelho esquerdo que, conforme pisava o solo, dava sinal de vida, foi se movimentar ao longo da Fernão se comprasse as passagens em até dez vezes no cartão de crédito. Um bom e velho salve, bem vindo à vida adulta que tanto sonhara. Despencava de uma ponta a outra na Fernão Dias, despencava de uma ponta a outra na Fernão Dias, despencava de uma ponta a outra na Fernão Dias, não... As pontes na Fernão Dias simplesmente ligavam a velocidade do ônibus à vagareza dos destinos. Apenas isso.

     E quando passava pelas favelas do Jaçanã e de Guarulhos ao longo da rodovia, observava o interior das alcovas pelas janelas abertas, cômodos iluminados pela escuridão de lâmpadas de 60 velas, de preço baixo no mercadinho mais próximo daqueles assentamentos arquitetonicamente atrapalhados. Lá dentro, sempre um armário igual ao seu com as malditas caixas de eletrodomésticos e brinquedos, juntos e misturados, sobre o maleiro. Embalagens cheias ou vazias, visíveis ou não por sobre o horroroso armário, causava-lhe engulhos. Toda vez que, durante uma visita, era convidado a adentrar um cômodo e via um armário com caixas em cima, sentia um ocre odor de gordura frita e transpiração, sentia um ocre odor de gordura frita e transpiração, sentia um ocre odor de gordura frita e transpiração, sentia um forte odor de gordura frita e transpiração, não... Os quartos quase sempre eram muito asseados, mas aquelas caixas sobre o armário eram de um mau gosto de levar à morte.

     As memórias-ponte apenas imbicavam a velocidade do Cometa para destinos maculados pela lentidão. Jamais, ao longo daqueles 15 anos, ao longo daqueles 15 anos, ao longo daqueles 15 anos, ao longo daqueles 15 anos, não... Ao longo daqueles 18 anos, de maioridade rodoviária, jamais sequer concebeu que as velocidades do Cometa e dos destinos, um dia, seriam precisamente iguais. Havia uma incompatibilidade natural entre a velocidade do autocarro e dos lugares onde pererecava, de um lado para outro. Apenas 8 horas separavam um destino do outro. Assim que alçava voo pelas pistas fissuradas da Fernão, esticava o pescoço quando o ônibus passava pelos motéis na funesta esperança de que pudesse fotografar um coito por alguma janela aberta. A tolice era tamanha que se esquecera da privacidade inerente a tal prática. Veio, então, a memória dos tempos em que andava madrugada adentro pelas ruas da cidade, imaginando quais janelas fechadas das casas e prédios tinham por trás um casal mantendo relações naquele instante, imaginando quais janelas fechadas das casas e prédios tinham por trás um casal mantendo relações naquele instante, imaginando quais janelas fechadas das casas e prédios tinham por trás um casal mantendo relações naquele instante, não... Talvez atrás de algumas daquelas janelas houvesse casais em seus encontros carnais

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⏰ Última atualização: Mar 16, 2016 ⏰

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