01 é preciso mais do que um coração batendo para se estar vivo ..

43 7 8
                                    

Eu abro os meus olhos e tudo o que eu vejo é o imenso céu azul sobre minha cabeça. Não há nada além disso. É apenas eu e o meu céu. Isso faz com que eu me sinta especial. O sol deixa minha pele vermelha, estou deitada em meio ao capim seco, já não sinto mais o pinicar das folhas em minha pele. Abro meus braços abaixando o capim que me cerca, minhas pernas acompanham o movimento. Gosto de imaginar que estou em meio a neve e em como seria sentir o gelo sobre minhas costas, o frio rasgando minhas bochechas. Fecho os meus olhos [...]

Eu gosto de manter esse momento na minha cabeça, porque nesse momento eu sou como qualquer criança de dez anos, eu não tenho preocupações, eu posso me dar ao luxo de ter sonhos, e sentir-me feliz por brincar de colorir o céu e o meu coração pulsa regularmente dentro da caixa torácica.

-Juliana!

Ouço meu irmão mais velho chamar meu nome. O conceito que eu tenho de felicidade, acaba ali. Quando a sua voz grave ecoa por todo o campo, o meu corpo estremece. Fecho os meus olhos, não tenho mais sensação de ser um fogo de artificio se explodindo no ano novo. Fico parada, não movo um dedo sequer para não ser pega, desejo me transforma parte dele. Sim, eu poderia ser um capim, meus cabelos ruivos e longos iriam se enraizar, a terra cobriria meu corpo, eu não sentiria dor, porque aquilo era o que eu queria ser. Eu fiquei calada ouvindo-o gritar. Não queria ir para casa. Junto minhas pernas devagarzinho, a oscilação do capim, faz com que ele perceba.

-Eu te disse para não brincar comigo! Alex, corre em minha direção. Meu coração dispara. Permaneço na mesma posição, seguro minha respiração. Nesse momento sou um mergulhador, sem balão de oxigênio no fundo do mar, não tem chances pra mim. Começo a contar, sinto as batidas do meu coração se esforçando para me manter viva. Alex me segura forte pelos ombros. –Sua vadiazinha! Sinto o meu corpo ser erguido, mantenho meus olhos fechados, sinto o impacto do meu corpo sendo jogado ao chão. É por isso que eu gosto do capim, ele é macio, eu não sinto dor quando caio sobre ele. Eu prometo para mim mesma ser forte dessa vez. Não posso chorar, não posso gritar. Alex fica mais irritado quando eu choro.

Meus olhos se abrem devagarinho, o céu não está mais azul. Alex se ajoelha sobre mim. –Porque você não pode ser boazinha, se eu sou assim... é tudo culpa sua. Você me deixa desse jeito. Suas mãos rasgam meu short, fecho meus olhos, rezo em minha mente para que ele termine logo. Sinto sua mão quente em meu rosto, logo seus dedos se prendem em meu cabelo, eu tento me movimentar, eu quero correr, quero fugir, sinto como se estivesse sendo rasgada por dentro. Abro meus olhos, Alex já está com sua cara irreconhecível, e se movimenta mais e mais rápido, sinto nojo dele, odeio o meu corpo.

Quando eu tinha uma mãe de verdade, ela me vestia com roupas cor-de-rosa, colocava laços em meu cabelo, e me dizia que eu era a princesa dela. Dançávamos a tarde toda sobre a pequena sala em nossa casa, no jantar ela me dava batatas fritas a mais, me colocava na cama todos os dias, e me dava beijos de boa noite. Mas o que os contos de fada não nos dizem é que a mãe da princesa morre, seu pai se torna um alcoólatra desempregado e sem noção do que é ou não real. Seu irmão cresce e vira o lobo mal. No meu conto de fadas, a princesa não tem final feliz.

Alex geme. Mas ainda não acabou. Fico quieta. Mantenho meus olhos fechados; tento respirar o mais baixo possível. Meu corpo inteiro dói. Ele bate em meu rosto. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Tudo torna a ficar silencioso. Alex se levanta. Alex vai embora. Eu fico ali, sentindo o meu corpo tentando voltar ao normal, juntando os pedaços de meu short, com lágrimas escorrendo pelo meu rosto cheio de sardas. Princesas não deveriam passar por isso; repito para mim mesma.

Sinto o peso em minhas pernas, estou apenas de calcinha. Quando abro a porta, meu pai está dormindo bêbado na espuma que chamamos de sofá. Me sinto segura porque Alex não está em casa, vou para o meu quarto. Pego o único vestido que sobrou da minha mãe e o abraço; deito em minha cama junto com ele e fico rezando para que toda a dor passe. Aos poucos a dor vai se tornando distante de mim, me encolho mais na cama, e aperto bem meus olhos até que eu possa adormecer por completo.

Acordo as 6:15 da manhã. Guardo o vestido dentro de uma caixa e escondo. Não quero que Alex o ache. Ele jogou fora tudo o que era de mamãe. Ligo o chuveiro, a água fria cai sobre o meu corpo anestesiando a dor, ensaboo todo o meu corpo e enxáguo. Repito o processo. Uma. Duas. Três. Deixo a água mais fria. Quero ficar limpa, quero parar de me sentir suja, de sentir dor. Quero ser limpa. Alguém bate na porta do banheiro. Fico calada. É a voz de Alex, me chamando de rata suja, mandando eu sair do bainheiro. Pego a toalha, mantenho o chuveiro ligado. Meu coração acelera. Abro a porta devagar. Sinto as mãos quentes de Alex fazendo pressão em cima dos meus ombros me jogando contra a parede. Mantenho meu olhar fixo nele. Ele não faz nada. Saio do banheiro.

Meu pai está na cozinha fazendo café. Me sento em um banco próximo a pia. Ele não pergunta nada a respeito do roxo em meus braços. Eu tenho medo de falar, papai coloca um pouco de café no copo para mim. Ele não pergunta como estou indo na escola. Acho que ele nem reparou que eu deixei de frequenta-la há alguns meses. Ele está sóbrio nessa manhã. Mas não é o pai que eu costumava ter. O pai que eu costuma ter, me colocava na cama todas as noites, lia histórias para eu dormir, olhava embaixo da minha cama para afastar os monstros. O pai que eu costumava ter me protegia. Esse pai, não existe mais.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Mar 20, 2016 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Sob Minha PeleOnde histórias criam vida. Descubra agora