Capítulo 4

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O Pajé vibrou o maracá e saiu da cabana; porém o estrangeiro não ficou só.
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.

- Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a noite; e o sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma. 

E, assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.

- Tu me deixas? perguntou Martim.

- As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.

- Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do Pajé.

- Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema Jurema - Árvore meã, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito do haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. A fabricação desse licor era um segredo, explorado pelos Pajés, em proveito de sua influência. Jurema é composto de ju - espinho, e rema - cheiro desagradável e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã. 

O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.
A grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria.
Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem batia a dança em torno a rude cadência. O Pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.
O maior chefe da nação tabajara, Irapuã, foi encarniçado inimigo dos portugueses e amigo dos franceses, descera do alto da serra Ibiapaba, para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara.
Os guerreiros do vale festejam a vinda do chefe e o próximo combate.
O mancebo cristão viu longe o clarão da festa, passou além, e olhou o céu azul sem nuvens.
A estrela morta, que então brilhava sobre a cúpula da floresta, guiou seu passo firme para as frescas margens do rio das garças.
Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, surgiu o vulto de Iracema. A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem.

- Por que, disse ela, o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras? 

O cristão sentiu quanto era justa a queixa e achou-se ingrato.

- Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que o afastava dos campos dos tabajaras. 

Não levava o presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.

- Se a lembrança de Iracema estivesse n'alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva.

A virgem suspirou:

- Guerreiro branco, espera que Caubi volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil que pressente a boicininga entre os rumores da mata; e o olhar do oitibó que vê melhor nas trevas. Ele te guiará às margens do rio das garças.

- Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araquém?

- O sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu.

- Teu hóspede espera, filha de Araquém; mas se o sol tornando não trouxer o irmão de Iracema, ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras.

Martim voltou à cabana do Pajé.

A alva rede, que Iracema perfumara com a resina do benjoim, guardava-lhe um sono calmo e doce.
O cristão adormeceu ouvindo suspirar, entre os murmúrios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.

Iracema (JOSÉ DE ALENCAR)Onde histórias criam vida. Descubra agora