Capítulo VIII

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A primeira impressão, mal-acordada, de Luísa foi que duas figuras, que não conhecia, estavam debruçadas sobre ela. Uma, a mais forte, afastou-se; o som frio de um frasco de vidro, pousado sobre o mármore do toucador, despertou-a. Sentiu então uma voz dizer abafadamente:

— Está muito melhor. Mas deu-lhe de repente, Sra. Juliana?

— De repente.

— Eu vi-a entrar tão afogueada...

Passos sutis pisaram o tapete; a voz de Joana perguntou-lhe junto do rosto:

— Está melhor, minha senhora?

Abriu os olhos; a percepção nítida das coisas foi-lhe voltando; estava estendida na causeuse; tinham-lhe desapertado o vestido, e havia no quarto um forte cheiro de vinagre. Ergueu-se sobre o cotovelo, devagar, com um olhar errante, vago:

— E a outra?...

— A Sra. Juliana? Foi-se deitar. Também se não achava bem. Foi de ver a senhora, coitada... Está melhorzinha?

Sentou-se. Sentia uma fadiga em todo o corpo; tudo no quarto lhe parecia oscilar brandamente:

— Pode ir, Joana, pode ir — disse.

— A senhora não precisa mais nada? Talvez um caldinho lhe fizesse bem...

Luísa, só, pôs-se a olhar em roda, espantada. Estava já tudo arrumado, as janelas cerradas. Uma luva ficara caída no chão; ergueu-se, ainda trôpega; foi apanhá-la; esteve a esticar-lhe os dedos maquinalmente, como sonâmbula, pô-la na gaveta do toucador. Alisou o cabelo; achava-se mudada, com outra expressão, como se fosse outra; e o silêncio do quarto impressionava-a, como extraordinário.

— Minha senhora — disse a voz tímida de Joana.

— Que é?

— É o cocheiro.

Luísa voltou-se, sem compreender:

— Que cocheiro?

— Um cocheiro; diz que a senhora que não tinha troco, que o mandou esperar...

— Ah!

E como a uma luz de gás que salta subitamente e alumia uma decoração, viu, num relance, toda a sua desgraça.

Ficou tão trêmula que mal podia abrir a gavetinha da cômoda:

Tinha-me esquecido, tinha-me esquecido... — balbuciava. Deu o dinheiro a Joana; e vindo cair sobre a causeuse:

— Estou perdida! — murmurou, apertando as mãos na cabeça.

Tudo descoberto! E representaram-se-lhe logo no espírito, com a intensidade de desenhos negros sobre um muro branco, o furor de Jorge, o espanto dos seus amigos, a indignação de uns, o escárnio dos outros; e estas imagens caindo com ruído na sua alma, como combustíveis numa fogueira, ateavam-lhe desesperadamente o terror.

Que lhe restava? — Fugir com Basílio!

Aquela idéia, a primeira, a única, apossou-se dela impetuosamente, traspassou-a — como a água de uma inundação que subitamente alaga um campo.

Ele tinha-lhe tantas vezes jurado que seriam tão felizes em Paris, no seu apartamento da Rua Saint Florentin! Pois bem, iria! Não levaria malas; poria no seu pequeno saco de marroquim alguma roupa branca, as jóias da mamã... E os criados? A casa? Deixaria uma carta a Sebastião para que viesse, fechasse tudo!... Levaria na viagem o vestido de riscadinho azul — ou o preto! Mais nada. O resto compra-lo-ia longe, noutras cidades...

— Se a senhora quer vir jantar... — disse Joana à porta do quarto.

Tinha posto um avental branco, e acrescentou:

O Primo Basílio - Eça de QueirósOnde histórias criam vida. Descubra agora