Capítulo 2 - AVC

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Moreira, 40 anos, vítima de AVC (Acidente Vascular Cerebral). Ou, para ser mais honesto, vítima do tabagismo, do álcool, do sedentarismo, da hipertensão e do stress diário. Alguns diriam que era castigo de Deus, pois batia na esposa regularmente, não dava atenção aos três filhos (ralhava com eles sempre que tinha oportunidade, e fazia largo uso da cinta na infância deles), além de sequer fazer sexo, já que não subia. A esposa era castigada pelas surras e pela ausência de libido do marido. Toda humilhação sofrida no escritório de contabilidade era transferida para a sua família.

Mesmo assim, a notícia da quase-morte do Moreira pegou a família desprevenida, e tanto esposa quanto filhos correram ao hospital assim que souberam do ocorrido. Arlete, dona de casa (proibida pelo marido de trabalhar fora de casa ou estudar), Armando, filho mais velho (vendedor de sonhos de goiabada), Arlindo, filho do meio (homossexual encerrado no armário, de medo do pai), e Artur, o caçula, ateu enrustido (Deus o livre do pai descobrir) chegaram à UTI, onde Moreira perecia estático, disforme, a cara rosada, os cabelos bagunçados e finos, revelando algumas entradas, deitado em uma cama hospitalar mecânica antiquada, coberto por um fino lençol de algodão bastante gasto.

— Bom, pelo menos a senhora não apanha mais, né, mãe? — falou Armando, os dentes levemente cerrados, mal disfarçando o rancor.

— Armando, isso lá é hora? Que falta de sensibilidade! — ralhou a mãe, chocada.

— Ah, ótimo, o insensível sou eu, então!

— Ei, baixem o tom, estamos num hospital! — interveio Arlindo, conciliador e firme.

A chegada do médico acalma (ou cala) os ânimos. Dá pouca esperança (ou muita, dependendo do ponto de vista). Era imprevisível. Moreira poderia se recuperar plenamente, como talvez não acordasse mais. Destino terrível a alguém tão jovem. O que fazer? E se ele de fato não acordasse mais, e passasse anos e anos em estado vegetativo? Como pagar a conta? Não eram ricos. Ninguém é rico nos livros do Fabiano.

O que ninguém sabia é que, na cama, havia alguém que a tudo ouvia, sem poder reagir. Nem uma piscadela, ou um dedo do meio. Nada. Mas Moreira, sem mover um músculo, estava consciente de tudo o que ocorria em sua volta. Desesperava-se com a perspectiva de passar anos naquela situação, exasperava-se com os diálogos dos filhos, e mentalmente se imaginava pegando uma cinta e os espancando sem dó.

— Pai? Que pai? Isso aí foi pai um dia? A única coisa que ele fez foi produzir a gente! Fora isso, não fez mais nada de bom! — comentou Armando, aproveitando a ausência da mãe, mas ao lado do pai desacordado.

— Não é hora pra isso, mano. A gente sempre teve problemas, mas ninguém queria isso. Ninguém merece passar por isso. — objetou Artur.

— O pior é que ninguém sabe o que vai acontecer. Se o pai vai acordar, e se acordar, se vai ter alguma sequela... — comentou Arlindo, num tom preocupado.

— Pensem pelo lado positivo. Agora podemos ser nós mesmos, sem ele pra nos atormentar. Eu vivo minha vidinha de vendedor, sossegado, vocês podem sair dos armários... — ironizou Armando.

— Você procurando lado positivo em alguma coisa? Isso é sério? Efeito do acidente do pai? —cortou Arlindo, visivelmente incomodado com o rumo da conversa.

— Ah, maninho, vai dizer que você não tá feliz de poder dar o cu à vontade, sem esse doente pra te perseguir? Você sabe que ele te batia até matar, se descobrisse tua viadagem, né?

— Porra, Armando, cale essa boca! Pelo menos respeite o pai, se não quiser me respeitar! Você fala dele, mas é tão homofóbico quanto!

— Eu não sou homofóbico, cuida do teu que eu cuido do meu! E você, Artur, seu ateuzinho de merda? Já começou a rezar pro pai acordar? — disse, com um sorriso enviesado, louco para encrencar.

— O único merda aqui é você. E deixo as orações pra quem acredita nessas merdas. Aliás, vou sair daqui enquanto ainda consigo não voar na tua cara, imbecil. Falou!

O pai ouviu todo esse diálogo, atônito. Gay? Ateu? Só podia ser um pesadelo. Não tinha mais controle sobre suas faculdades mentais. Não podia crer que seus filhos fossem tão dissimulados. Era definitivamente um pesadelo. Bateu pouco neles. Devia ter batido para matar. Não era à toa que nada funcionava em sua vida. Escritor frustrado, passou anos tentando publicar um amontoado de folhas que ninguém queria ler. Casamento frustrado com uma esposa fraca e monótona. Profissional frustrado, com um emprego burocrático, salário medíocre e um chefe frustrante. Agora, um filho gay e outro ateu. A morte seria um alívio diante de tão calamitoso cenário.

O mais horrível era não poder gritar, pular, surtar violentamente. Ele sentia que poderia ter mais um AVC. Se teve, não saberia dizer. Mas apagou como há tempos não fazia. Sim, ele dormiu, pela primeira vez em semanas.  

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