Capítulo III - Subsolo 2

14 1 0
                                    

"Estou muito ansioso pelo fim dos próximos quinze dias, poderei me comunicar novamente com minha família e com o resto da civilização. Tudo o que eu tinha para aprender sobre os rituais dessa região eu aprendi. Será mais um bom livro... e provavelmente o último por algum tempo. Já perdi muitos momentos importantes da minha família... e minha principessa está se tornando uma mulher, logo eu não serei mais o único homem na vida dela. Ela nem imagina que estarei em casa a tempo de comemorar seu aniversário.
Essa parada na Europa servirá para comprar um belo presente para ela, mas ainda estou curioso para saber que relíquia era essa que aquele padre parecia tão apressado em se livrar. Mal pisei no continente e já recebi sua ligação, dizendo que detinha uma relíquia que será muito importante para as minhas pesquisas e que renderá a maior obra da minha carreira literária. Quem sabe a encerrarei com chave de Ouro? Prometi contata-lo assim que retornasse para lá, antes de voltar para o Brasil, dentro de alguns meses. Ele não pareceu feliz, mas foda-se, ele não tinha escolha... eu não tinha escolha, não queria arriscar levar algo tão precioso em uma viagem por territórios tão remotos... e fiz bem! Logo que cheguei aqui, tive meu telefone por satélite destruído por um garoto cheio de curiosidade, mas atrapalhado, que acabou derrubando-o de uma altura de uns 15m sobre as pedras.
Nunca rezei tanto para que tudo ocorresse bem comigo e com a equipe, mas fomos bem recepcionados e cuidados pelos nativos tão solícitos em nos ensinar sua cultura e rituais. Agora faltam só quinze dias para chegar em casa, matar a saudade de meus dois amores: Suzana e Seline."

Giacomo terminava de escrever em seu diário e se deitou para sua última noite de sono naquelas terras. Logo pela manhã embarcaria numa viagem que envolvia uma longa caminhada de horas, duas carroças puxadas por mulas, uma balsa, uma Kombi, um avião nada confiável até um aeroporto onde, enfim, poderia embarcar num confortável air-bus até a Europa e, de lá, retornar para a sua família e conhecer seu novo lar. Uma jornada de 15 dias...
Giacomo estava acostumado a estar longe da família por longos períodos de tempo, e não era a primeira vez que ficava incomunicável. Mas dessa vez parecia ser diferente, sentia uma certa urgência em voltar pra casa, como se temesse que se não voltasse logo, perderia sua família.
Naquela noite sonhou com o fim de semana na praia, quando Seline viu o mar pela primeira vez. Ela tinha 10 anos, era um tempo de menos recursos, e isso tornou aquela viagem tão especial, estavam verdadeiramente felizes. E em uma típica virada de sonho, eles já não estavam felizes. O céu ensolarado virou escuridão, uma estrela cadente vinha em direção da pequena Seline, atravessando seu pequenino tórax. Não, não era uma estrela cadente, era uma flecha. Outra flecha zuniu perto de seu ouvido e o grito de Suzana se calou. Giacomo tentava gritar, mas sua voz não saía, ajoelhado entre os corpos de sua esposa e filha, abriu os braços esperando sua flecha de olhos fechados... mas ela não veio. Abriu os olhos, estava na rede do casebre onde se hospedara... ainda tremia todo o corpo, e o suor do rosto se misturava a lágrimas. Demorou um tempo para se acalmar e ter plena consciência de que tudo foi apenas um terrível sonho.

O sol mal havia nascido e Giacomo e sua equipe davam início a primeira parte de sua jornada e, após quinze longos dias, fazia o check-in em um confortável hotel. Ficou surpreso quando o recepcionista disse que deixaram um recado para ele, com instruções de ser entregue assim que chegasse. No papel entregue pelo funcionário do hotel, havia um número de endereço uma única frase:

"Ainda tenho a peça final de sua história..."

Era a frase que o Padre falara ao telefone há meses atrás, a frase que o convenceu a dar um voto de confiança. Giacomo ansiava por isso, a cartada final, e se tornar um homem de família bem sucedido.
Subiu ao quarto e se preocupou apenas em tomar um banho quente, se arrumar e pegar um taxi até o endereço do bilhete.
"Serão apenas algumas horas no máximo, assim que eu voltar ligo pra Suze, essa história de relíquia vem me consumindo..." pensava, quando o taxista parou, anunciando que chegaram ao destino.
Não ficou surpreso pelo endereço ser uma igreja, na verdade riu da obviedade, mas ficou surpreso quando o taxista disse que a igreja estava fechada há anos.
Agradeceu e dispensou o taxi, o local era de trânsito movimentado e não seria difícil localizar outro taxi ali.
Subiu a escadaria e notou que a igreja estava bem abandonada, buracos na parede que deixavam visível o interior da igreja. Foi por um desses buraco, com espaço suficiente para duas pessoas passarem, que Giacomo entrou. O interior também estava bastante deteriorando com alguns bancos amontoados em alguns pontos, entulhos e o barulho de pombos que tomaram a igreja como seu enorme pombal, por isso o cheiro lá não era agradável. A claridade vinha de enormes buracos, também, no teto. Apesar do péssimo estado de conservação, era possível ver que, no passado, essa igreja foi muito bonita, mas hoje parece um cenário clichê de filme de terror. O que o fez lembrar que era impossível tal lugar ter um pároco.
Irritado por, obviamente, ter sido vítima de uma pegadinha de mal gosto, caminhava em direção a "saída" quando seu celular tocou:
_ Dará as costas ao seu destino señor Razzi ?_ a voz era a mesma de meses atrás, o Padre, ou melhor, o filho da puta que o enganou e agora estava ligando para se vangloriar.

_Olha aqui disgraziato! Eu não tenho tempo para suas piadinhas! Conseguiu o que queria! Enganou um trouxa, agora vê s...
_Quem disse que isso é uma piada señor Razzi? Pelo contrário, isso tudo é muito sério!_ a voz do outro lado permanecia calma e séria.
_Então por que você não está aqui?
_Veja bem señor Razzi, o que tenho é algo assim como sua filha:_ Giacomo ficou paralisado ao ouvir aquilo, como o Padre sabia de Seline?_ aparentemente frágil, delicado, mas de uma enorme força capaz de gerar uma força ainda maior e mais poderosa.
_Como... o que sabe so-sobre... como sabe que tenho uma filha?
_Ora señor Razzi, isso tudo é e sempre foi sobre sua filha... você é uma peça essencial para a história dela. E outra peça essencial é o que se encontra no interior da urna sobre o altar... vamos! Abra! É o presente que você dará a ela em seu aniversário!

O tom de voz do Padre, de respeitoso e sério, passou a ser imperativo e com menosprezo. Giacomo estava confuso, apavorado, mas precisava saber o que tinha ali dentro daquela pequena urna de metal, escura, repousada sobre o altar que, momentos antes, estava vazio.
Abriu a urna e sentiu o ar mais pesado, gelado. Dentro dela havia um cordão com um delicado pingente esculpido em pedra, com algo gravado que não conseguiu ler:
_Vê? Essa é a peça final de sua história... _ a voz não vinha mais do telefone. O Padre estava diante dele, surgindo de onde a luz não alcançava. Era muito magro, com dedos compridos e bem finos. Os poucos cabelos brancos e seus olhos profundos davam uma aparência cadavérica. Mas o olhar, penetrante e frio, era capaz de amedrontar a mais corajosa das pessoas. _ ... e a peça inicial do fim de tudo o que ama!

Com apenas um movimento rápido, de uma velocidade impossível para alguem de idade tão avançada como aparentava, e o dedo indicador em riste, o Padre passou a unha pela garganta de Giacomo, abrindo um corte ao longo do pescoço como se usasse um bisturi. O sangue quente começa a escorrer e o Padre, com a mesma velocidade sobrenatural, se colocou atrás de Giacomo impedindo-o de cair e inclinando seu corpo para frente, forçando a derramar seu sangue no interior da urna. Aterrorizado e antes de perder a consciência, Giacomo percebeu que o pingente parecia absorver o sangue que escorria sobre ele.

_Tolo! Sua ambição o trouxe até aqui, ao seu fim! Você sempre pôde voltar pra sua familia mas queria um ultimo sucesso não é mesmo? Algo que o fizesse rico o suficiente para nao ter mais que trabalhar certo? Ótimo! Você cumpriu o seu propósito e sua esposa e filha também cumprirão. Elas não poderiam saber de seu retorno, mas não se preocupe, elas também não saberão da sua partida.
Seu sangue é o que a pedra precisava para controlar Seline... sabe, o sangue é algo muito poderoso, laços sanguíneos sempre foram fortes maneiras de se controlar alguém... o cordão, ela achará que você o enviou de presente e assim que ela o usar... bom, posso dizer que você irá desejar ter continuado a morar naquele apartamento menor, quando tudo era mais simples...

Giacomo não acreditava, tentava gritar e acordar, mas dessa vez não acordaria, aquilo estava realmente acontecendo... logo ele que quis tanto voltar pra casa, para sua família, não as veria nunca mais... nem chegaria a conhecer o Condomínio onde investira boa parte de sua recente fortuna.
Agora era silêncio, escuridão... ali sob o altar, o corpo sem vida de Giacomo repousava, sozinho... uma alma sem ninguém para lamentar sua partida.



Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 30, 2016 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O Edifício Black TowerOnde histórias criam vida. Descubra agora