The one with a love song

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MAYA CARVALHO está online.

Maya diz:

Sabe quando você sente como se as palavras estivessem lutando para serem verbalizadas, mas, mesmo assim, é incapaz de externizá-las? Você sente tudo reverberar, através das suas cordas vocais, enquanto elas se encaminham pelo seu esôfago, e acaba ficando com tanto medo de que elas possam vibrar na mesma freqüência que seu corpo que se imagina como uma taça de vidro quebradiça e entra em pânico porque seu maior receio é ficar aos frangalhos. Quão crítica é a fragilidade do emocional de um ser humano ao fechar os olhos para aquilo que lateja dentro de si mesmo?

Arthur diz:

Estamos falando de um cenário em que não temos como escrever ou transmitir através de mímica o que queremos dizer?

Maya diz:

Imagine assim: não há caneta nem papel (nem giz, quadro negro, galho, areia ou QUALQUER COISA que você possa usar como utensílio para escrever), suas mãos estão atadas, você está imobilizado, a única parte do seu corpo livre são seus lábios. A única forma de você dizer o que você quer transmitir é verbalizando seus medos mais profundos. É dando um passo (metafórico) em direção ao abismo. É dizendo em voz alta aquilo que pode te fragmentar.

Arthur diz:

Nesse caso, a dramaticidade da situação exige medidas sérias. Essas palavras seriam moralmente erradas?

Maya diz:

Não há nada de errado com as palavras. É a pessoa.

A pessoa é daquelas que nunca sentiram necessidade de dizer nada. Ela costuma abaixar a cabeça, fechar os olhos e deixar implícito qualquer segredo longe dos corações suscetíveis. Não que ela seja avessa às palavras, ela apenas nunca as encontrou. E ela as buscou. Dia após dia, semana após semana; até cogitar nunca ser capaz de desvendar o mistério por trás daquilo. Havia momentos em que ela pensava que havia as encontrado e tentava, com muito esforço, puxar as palavras lá do fundo do abismo de si mesma, mas, toda vez que suas mãos alcançavam a solidez da razão, ela sentia que havia deixado algo escapar entre seus dedos.

Ela pensou que não era do tipo que dizia levianamente as palavras, como se fosse água escoando livremente num córrego.

Até que um dia, sem ela sequer perceber, as palavras a tocaram como se estivessem sido direcionadas. Ou chamadas. Ou até mesmo sentidas.

É estranho isso? Você consegue entender?

Arthur diz:

Acho que posso até sentir.

Maya diz:

De toda forma, não é como se você abominasse as palavras. É que você nunca sentiu a eloqüência delas. Você nunca provou a forma cadenciada que seus lábios se repartem ao tentar pronunciá-las. Você nunca estudou a reação de alguém ao ouvi-las. Você nunca as testou. Você nunca sentiu a necessidade de se aventurar nas sílabas rítmicas da sua fala oral.

Mas, Deus, como você quer dizê-las... Como você quer soletrar a frase... Como você quer se desmanchar em três palavras... Como você quer se abrir e se vestir ao avesso...

Só que o medo do desconhecido é maior que o desejo de rasgar o peito e arrancar as letras soltas a céu aberto.

Você as diria, Arthur?

Arthur diz:

Algumas coisas não são ditas apenas com palavras, Maya. Mas se, para essa pessoa, o medo é tão corrosivo que consegue manchar a reação das próprias emoções, se seus sentimentos sangram com o discurso direto, eu sugeriria que ela pincelasse o que sente em versos sutis e em ações honestas.

Eu, particularmente, sou fã das palavras. Há uma, em especial, que eu guardo dentro de mim e que me instiga profundamente.

Você sabe como eu adoro colecionar palavras que não possuem tradução literal pro português, não é? Tem uma que eu gosto bastante, é a Mamihlapinatapei. Essa aqui é de um dialeto falado no arquipélago da Terra do Fogo; a tradução mais próxima do literal seria: "o ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam, mas que ninguém tem coragem de começar".

Não estou te olhando nos olhos, mas quase posso te enxergar daqui.

Sei que está franzindo o cenho, apertando os lábios pequenos num bico de irritação pela minha "divagação intelectual", como você gosta de frisar com implicância. Sei também que seus lábios se desmancharam num sorriso cínico com esse comentário.

Agora você está balançando a cabeça em negativa.

E agora você está com a boca aberta em ultraje.

(Ou eu errei tudo e mereço o calabouço).

Maya diz:

(Você nunca é sentenciado para o calabouço, droga. Você está hackeando minha webcam?)

Arthur diz:

Algum de nós dois precisa ter alguma habilidade dedutiva, senão nunca poderemos encenar Poirot e Hasting novamente.

Maya diz:

Você nunca vai parar de usar isso contra mim?

Arthur diz:

... NÃO!

Mas, voltando ao dilema das palavras, já pensou em tentar transmiti-las sem verbalizá-las explicitamente?

(Sim, eu sei que é para ignorar quadros, areias, galhos, etc etc.)

Estou falando de música. Nunca enviou uma música para dizer o que sentia?

Maya diz:

Uma música? Como se fosse um musical dos anos 70 ou como se você estrelasse um filme da Disney? Tipo começar a cantar espontaneamente sem razão aparente?

Arthur diz:

Não, Einstein.

Uma música. Uma letra de música. Simples assim. Tipo algo de Legião Urbana ou Mamonas Assassinas.

Maya diz:

Mamonas é tão romântico. Você me impressiona.

Arthur diz:

Você não tem uma música para todas as pessoas da sua vida? Você não tem uma playlist para o seu cotidiano e para os momentos de glória? Você não tem uma música específica para protagonizar uma cena de ônibus, encarando a estrada de forma desolada como se protagonizasse um videoclip?

Maya diz:

... Não?

Você tem?

Arthur diz:

Meu Deus, eu não te conheço! Que tipo de ser humano vil não tem uma música para fingir participar de um videoclip durante uma viagem de carro ou ônibus?

Respondendo à sua pergunta: claro que tenho. É "All By Myself" da Celine Dion, obviamente.

Maya diz:

Não seja ridículo. Então quer dizer que você tem uma música para todas as situações e pessoas da sua vida?

Arthur diz:

Por que eu não teria?!

Maya diz:

Você tem uma para mim? Qual?

Arthur diz:

"Cuando me Enamoro", do Enrique Iglesias.

Maya diz:

Vou procurar a tradução...

Mas por que faz você se lembrar de mim?

Arthur diz:

Porque quando falo com você, às vezes fico desesperado.

Maya acabou de chamar sua atenção.

Arthur acabou de chamar sua atenção.

Maya diz:

Eu te amo.

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