Prólogo

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O líquido viscoso cobria o piso gélido como tinta que mancha um papel em branco. Na negritude da noite, não havia som de respiração, não havia murmúrio, o silêncio tratava de imperar.

Longos pilares arredondados erguiam-se majestosamente sobre o cenário, o salão completamente intacto, com vasos translúcidos, quadros angelicais e ladrilhos em padrões inimagináveis. Na brisa que circundava os dois únicos corpos presentes, o cheiro metálico de sangue subjugava cada um dos indivíduos e os transformava em monstros.

O anjo e o demônio. O bem e o mal. O puro e o imundo. Ambos eram monstruosos nas mesmas proporções. Naquele recinto, só existia Josh e Gale. Suas diferenças acerca de o que eram não poderiam existir...

Os segundos rodavam no relógio de bolso de Josh, que mantinha ambas as mãos firmemente presas a um gládio, agora banhado de sangue negro de demônio, que respingava da ponta até o ladrilho colorido, manchando-o hediondamente. Mesmo ali, ele pôde sentir uma ânsia atordoante mexer com suas entranhas e fazê-lo querer correr. Mas, num único golpe, sua chance de dar fim a guerra se tornaria uma realidade... Tudo não passaria de lenda e, de tantos homens que morreram, o sacrifício de apenas um seria a resposta.

Um suspiro. Gale estava, pela terceira vez, de pé, com sua arma humana de fogo, a mira prometendo ser certeira, em sua direção. Novamente, o anjo pareceu ver uma luz e a dor massacrante em suas entranhas retornara. Seu cérebro parecera ter sido usurpado e logo milhares de uivos noturnos preenchiam o salão.

Demônios. Centenas deles, escalando as paredes brancas com os dentes à mostra, unhas sujas e compridas arranhando as paredes, enquanto pés pisoteavam as tapeçarias do salão principal. Josh sentiu repulsa. Gale sentiu-se vitorioso.

- Eu devia ter imaginado. Como o demônio nojento que você é, não poderia jogar limpo de qualquer maneira. Nem mesmo se tentasse. - o mais velho anjo dos Céus ia ditando amargamente, todos os dedos das mãos pulsando de inquietude, medo... A desesperança o corroendo por dentro, desde as paredes internas da alma até a ponta da língua, esta que formigava para soltar insultos nada convenientes no instante.

Gale pigarreou e riu.

- Nunca ouvi palavras tão bonitas vindas de você antes, Josh. Fico lisonjeado. - Reverenciou-se. Gale estava próximo, Josh constatou, e para a pior de suas conclusões, por mais debilitado que o governante do submundo estivesse, ainda era possível ver suas íris acenderem-se em fúria. Não podia definir qualquer das escolhas feitas pelo antigo amigo como boas ou ruins para ambos, mas, desde sempre, tudo se encaminhara para a desgraça total.

A Guerra poderia parecer apenas uma válvula de escape sendo ativada pelos lados opostos de luz e trevas, mas nunca iria ser. Todos os milênios de conflitos, atritos, profecias terríficas... Não era natural, tudo seguia por um fluxo, era o destino hediondo dos mundos diferentes.

E, mais do que ninguém, Josh não se orgulhava dos feitos. Por anos tudo que restara do submundo e do paraíso foram cinzas... Milhares de anjos mortos, milhares de demônios destruídos e desaparecidos; com a falta de tempo e com os exércitos sendo mutilados, anjos da guarda abandonavam suas funções e ficavam a postos para batalhas. Humanos morreram, o mundo era um caos. Cada detalhe afetara drasticamente todos os multiversos e, naquela noite, tudo parecia finalmente ter uma luz.

Se ele não matasse Gale, tudo se tornaria preto e branco. O cinza. A cor da tristeza, do subjugar. Era egoísta de sua parte perder para um maldito demônio.

- Eu não entendo... - Josh deixou escapar. O gládio fora se erguendo no ar, cortando-o lentamente enquanto o som de gritos enfurecidos. Suas pernas pareciam feitas da coisa mais flácida do mundo e seu ouvido zumbia como se milhares de abelhas zanzassem ao seu redor, perturbassem seu espírito. Porém, tudo que havia ao seu lado eram homens trajando negro e cuspindo palavras ásperas e seus músculos inferiores estavam bem fixos aos ossos rígidos. Não tinha como errar, ele estava perto! Podia acertá-lo!

A medida que o grito de um dos amigos de Gale adentrava os ouvidos de Josh, ele visualizou bem seu objetivo. O dedo em riste da mão esquerda do inimigo lhe intrigava e nas pálpebras esticadas de Gale, Josh conseguia ver o horror, a incredulidade e o ódio.

O anjo havia acertado um dos seus e este agora arranhava o chão debilmente, prestes a engolir a saliva e perceber que a garganta continha uma ferida repugnante jorrando sangue negro. Fora o estopim.

Não parecera durar mais de cinco minutos, depois que tudo começara. Um tiro, dois, três e Gale estava desesperado o suficiente para não notar que, de fato, o anjo não sucumbia a meros tiro humanos de um projétil banal. Excepcionalmente, o sangue do corpo do demônio gelara em um fração de segundos, ao que nenhum dos outros fora capaz de reparar.

Não teve como Gale impedir o outro de se aproximar, empurrando-o a uma distância considerável. No rosto de Josh, tudo que podia ser notado era a determinação, nem um sinal de que fraquejaria. Seus globos adquiriram um tom diferente, ele sentiu-se pesado.

Josh avançou e ele assustou-se em primeira instância.

O gládio brilhante o convidara para uma dança mórbida, brutalmente rasgando-lhe a carne vigorosamente. O ferimento ia se tornando uma mancha viscosa e pingante, misturando-se nojentamente ao resto da sujeira asquerosa.

Gale riu e Josh quase sentiu o coração parar de bater, incrédulo. Ele não iria sobreviver. Não era possível.

- Tinha esquecido que sempre perco quando jogamos. - o demônio sorriu e o outro não soube distinguir se aquele era uma expressão cínica ou humilde. Não poderia saber... E nem mesmo queria.

- Você é péssimo com jogos, Styles. - vacilou uma sílaba, ao que a mão alheia subia até a guarda do gládio, girando a estrutura. Josh não tardou a puxar a arma que usava depois disso, vendo o demônio perder a postura ereta.

Num baque surdo, o corpo, que parecia embriagado, fora empalidecendo. A garganta seca de Josh fê-lo saber naquele momento: a Guerra não estaria acabada agora, mas um peso de anos que ele mantinha em suas costas esvaíra-se junto a vida de Gale Styles.

E enquanto o Horan podia sentir o alívio cego consumando-se em seu âmago, próximo aos ladrilhos manchados do sangue do pai, o filho de Styles sucumbia em pânico.

Cinza era a cor da tristeza, do subjugar. Cinza era a cor da alma, quando está em estado catatônico. Mas, naquela noite, cinza era a cor dos olhos de Harry Styles.

Nocte Daemones //HS AND NHOnde histórias criam vida. Descubra agora