A Saída do Templo

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A primeira coisa que Ria pensou ao acordar de manhã, foi no que diria para Madame. Porque tinha que dizer alguma coisa, claro. Era certo. Não conseguia mais dormir ou comer, só pensava naquilo. Aquela resolução que mudaria tudo. A única coisa que nunca fora dita. Quando se olhou no espelho antes de lavar o rosto, achou que tinha envelhecido uma década.

            A presença de Marin no templo tinha abalado a frágil estrutura organizacional do lugar. Havia uma leve tensão no ar, Ria conseguia perceber. Todos continuavam em suas funções. Os ajudantes deixavam tudo em ordem, os sacerdotes cumpriam seus deveres ministrais, os curadores tomavam contam das galerias. Mas havia algo... algo como um odor diferente no ar, algo que contaminava todas as instâncias do templo. Algo invisível, imensurável, quase imperceptível. E por isso mesmo tão ameaçador.

            Não que Marin fosse uma figura perigosa. Pelo contrário. Era uma garota magra e um tanto baixinha, diferente dos arquétipos altos que se viam no templo. Suas mãos eram pequenas e seus dedos, tão finos, que davam a impressão de se quebrar em qualquer coisa que ela tocasse.

            Quando a viu pela primeira vez no templo, Ria achou ela fosse mais uma daquelas crianças perdidas. Foram os olhos que lhe disseram o contrário. Eram grandes e negros. Tão profundos que Ria pensou que seria capaz de se perder se olhasse neles por muito tempo.

            No primeiro dia não conseguiu ficar perto dela. Era uma estranha, afinal, e Madame tinha lhe alertado sobre estranhos. Comida, água e abrigo, era o dever que tinham para com os outros, mas era preciso lembrar que não eram do templo. Não eram como eles. Eram do mundo exterior onde havia fome, terror e morte. Podiam ajudar como podiam, mas nada que fizessem amenizaria a dor daqueles do mundo exterior. Estavam fadados à solidão e ao desespero. Restava que orassem por eles.

            Mas havia algo em Marin que deixava Ria desconcertado. Não conseguia parar de encará-la. Se via arrumando tarefas para fazer perto do aposento onde ela estava, inventava desculpas para ir até o refeitório. Cada espiada em Marin era uma interrogação. De onde vinha aquela garota? Qual seria sua história? O que a levara até o templo?

            Cada noite era um exercício de resposta àquelas perguntas. Ficava sem dormir, imaginando o mundo exterior e imaginando Marin nele. Às vezes ela era filha de algum mercador, em outras, era uma aristocrata que fora arrancada da família e agora vagava perdida no mundo. Mas quando no dia seguinte espiava Marin por cima do ombro, percebia que ela era todas aquelas possibilidades e nenhuma ao mesmo tempo. Eram aqueles olhos.

            - Quando é que vai vir falar comigo?

            Ria deixou o conteúdo da pilha de livros que segurava cair no chão tamanho o susto.

            Era o sétimo dia da estadia de Marin no templo e a primeira vez que ela se dirigia a ele.

            - O que...? – a voz dele saiu engasgada enquanto tentava pegar os livros do chão.

            - Eu disse que você devia vir falar comigo.

            Ele ficou bastante nervoso, mas num impulso de coragem, decidiu ir falar com ela. Sentou a seu lado no banco do refeitório. Nem se lembrava do que tinha dito, mas Marin tinha rido. Rido até tossir.

            Então os dois conversaram durante o que pareceu serem horas. Ela contou do mundo exterior, dos lugares que tinha visto, das paisagens mais belas às mais inóspitas. O mundo além do templo era ainda maior do que sua imaginação mensurava à noite no quarto.

            Nos dias que se seguiram, Ria ia encontrar Marin no refeitório depois de suas tarefas matinais. Fazia tudo correndo apenas para ouvi-la contar do mundo exterior e quando se despedia dela, horas depois, repassava na mente todas aquelas histórias de cores, cheiros e sons.

            No sétimo dia de conversas, Marin disse em sua voz rouca de tosse:

            - Você deveria ver tudo isso, Ria!

            A frase o deixou mortificado. Não conseguia comer ou dormir. Não conseguia se concentrar nas tarefas do tempo. Nem suas orações o deixavam em paz.

            O mundo exterior. Era uma possibilidade real. Ele poderia ir, não poderia? Talvez até mesmo com Marin. Poderia andar nas planícies de terra arroxeada e sentir na pele as chuvas torrenciais dos vales. Mas Madame nunca permitiria. Ele era do templo e ninguém nunca saía de lá.

            Não era uma proibição, mas todos sabiam que os neófitos deviam permanecer para sempre entre as paredes. Onde era seguro. Nada lhes faltava ali e Madame garantia isso. Tinha comida, segurança, conforto. Que mais poderiam ansiar?, era o que ela acrescentava num olhar cheio de mágoa.

            O pensamento de sair, no entanto, tornou-se um tormento para Ria. Tamanho, que decidiu que falaria com Madame. Pediria permissão para sair.

            - É só por alguns dias – ele disse sem olhar nos olhos dela – Marin está doente. Tem uma tosse que não passa. Vou levá-la até o povoado mais próximo e depois retornarei.

            Madame lhe lançou um olhar desconfiado, mas consentiu.

            Ria empacotou as coisas e contou seus planos para Marin, que sorriu de leve. Ela não tinha nada para empacotar.

            Quando retornou de viagem, três dias depois, queimado de sol, Ria sentiu-se um estranho no templo. Depois de ver o mundo para além, as paredes de pedra deixaram de fazer sentido. E além disso sentia falta de Marin. De seu sorriso leve e sua voz rouca.

            Mas Madame jamais lhe daria permissão para sair novamente.

            Os dias se passavam lentos e as tarefas pareciam intermináveis e sem sentido. Ria emagreceu e Madame veio ter com ele, perguntando o que havia de errado.

            - Nada – ele dizia desviando os olhos – Nada não.

            Mas era tudo.

            Um tudo tão grande que Ria começou a traçar planos de fuga. Chegou a arrumar suas coisas três vezes, mas na última hora, não saiu do portão.

            Dois anos se passaram e Ria agora já era iniciado no templo. A trouxa da fuga, porém, não saía de debaixo de sua cama. A risada rouca de Marin estava sempre em seus sonhos.

            Madame tinha planos para ele, sabia. Uma vida inteira de trabalho o esperava no templo e Ria sabia que era dedicado, que conseguiria regalias dentro de alguns anos. Poderia chegar a sacerdote, se quisesse, ou quem sabe um escriba. O calor do sol, no entanto, ainda queimava em sua pele.

            No dia de sua consagração foi encarar o grande portão de madeira do templo. Era enorme, de madeira reforçada com metal. Parecia pesado. Não havia guardas, nem vigias.

            Ria tocou o trinco de leve e percebeu que não havia cadeado. Estranho. Empurrou o portão e ele se moveu facilmente. A porta agora estava entreaberta e uma fresta de sol entrava tímida, iluminando as paredes de pedra.

            Pensou em Madame e em seu olhar de mágoa, nos colegas de ofício, na imensidão de pedra do templo. E pensou no sol, na terra instável e nos olhos misteriosos de Marin.

            Antes que se desse conta, estava na estrada do mundo exterior.

            A trouxa de fuga continuava embaixo da cama. 

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