Capítulos 1- 2 e 3

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A TEMPESTADE

Um relâmpago riscou o céu enegrecido pela forte tempestade. As ondas do Mar Insólito se chocavam rudemente contra as rochas das montanhas escarpadas, espalhando detritos e dejetos sobre as pedras ribeirinhas. O tempo estava alterado devido à proximidade do invernoso, a estação mais rigorosa de todas. Antes que o frio menosprezasse os ossos cansados e doloridos, fortes chuvas provocaram enchentes destruindo barracas de peixe, de farinha, frutas e derivados do leite.

Os mercadores tentavam salvar suas mercadorias no caos que tinha tomado conta do cais. Galinhas corriam de um lado pra outro, encharcadas, uma vaca mugiu em sofrimento, pois o vento não a deixava seguir em frente, sempre a empurrando para o lado direito em direção ao mar. Os barris que haviam sido retirados a algumas poucas horas de dentro dos navios, eram carregados para frente e para trás pelas ondas furiosas. Muitos se chocaram contra as rochas se arrebentando. Seus conteúdos foram espalhados sobre a areia da praia, estragados. A tempestade arrasava tudo por onde passava, sem piedade.

A enxurrada invadia as ruas sem o menor respeito por quem passava esbaforido, tentando salvar seus pertences, inundando vielas até ir de encontro ao seu maior desejo, as casas dos anilianos. O esgoto, rudimentar, veio à tona espalhando dejetos, lixo e expulsando roedores além de outras criaturas das profundezas para o caos das ruas de Anília. Crianças choravam com medo dos raios e trovões, mulheres e idosos tentavam em vão retirar a água suja e o lixo que invadia suas casas.

O Mar Insólito não parava de castigar o Porto das Gaivotas. Os mercadores vindos de outros continentes comandavam seus empregados que carregavam caixotes contendo tecidos, grãos, ferramentas e especiarias levando-os para os porões dos navios ancorados. Muitas vezes sentiam-se frustrados, pois a fúria do vento norte arrancava-os de suas mãos. Os impropérios e xingamentos eram abafados por trovões que pareciam querer dinamitar a encosta da Montanha Rimeriana. Difícil manter os barcos amarrados ao píer, pois o impetuoso mar impedia a visibilidade. Também não podiam navegar para águas mais serenas uma vez que corriam o perigo de serem jogados contra as rochas ou contra outros barcos. O vento fustigava as árvores carregando consigo telhas, cercas, plantas, tudo que não pudesse resistir a sua fúria.

Um grupo de homens tentava em vão conter o avanço da enchente formando barricadas de sacos de areia e pedras nas margens próximas ao Rio dos Sacrifícios onde muitas crianças e idosos pereceram afogados na época conhecida como reinado do Cavalo Louco. Essa prática bárbara utilizada para conter o avanço da febre amarela foi extinta no reinado de Evelon Rimeriano, pai de Krisna há quase quatrocentos anos. A partir daí começaram a tratar das pessoas e suas enfermidades de forma digna, combatendo o mal com carinho e respeito. Houve um grande investimento em pesquisas o que culminou com a descoberta de uma cura para a doença.

A tempestade parecia estar guerreando contra um punhado de soldados rasos que, ao menor sinal de perigo, debandavam sem ter como se protegerem.

— Pela Deusa! Quando essa tempestade vai se abrandar? — gritou Córis um homem baixo, magro e com uma barba encaracolada já meio grisalha, enquanto tentava a todo custo tapar os buracos que a água fazia na barricada.

— Alguém deve enviar uma mensagem a Senhora Deusa! Godrico! — um rapaz moreno e franzino, com dentes encavalados e apenas um olho bom correu ao ouvir o chamado. — Vá até o Penhasco dos Raios e conte à deusa o que está acontecendo por aqui. — ordenou Manodro, o ferreiro da aldeia.

Enquanto isso, no Penhasco dos Raios, uma jovem de olhos e cabelos azulados tentava conter a fúria da tempestade, clamando aos deuses para que parassem de ferir sua terra e seu povo.

A Deusa de Anília e Outras Histórias (primeiros capítulos)Onde histórias criam vida. Descubra agora