Giving Life to the Death

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''Não ajude eles. Se nós não existíssemos as coisas ficariam assim. E nós não existimos para eles, lembra? Deixe-os.''

Minha mãe falava isso toda vez que eu via um humano morrer. Falava isso toda vez que chegava em casa, triste por simplesmente observa-los se afogarem com a água, se agonizando com a falta de ar, até morrerem.

Eu queria poder salvá-los, mas eu não podia. Eu não existia no mundo deles, por isso não podia interferir em nada que acontecesse com eles. Minha mãe dizia que eu tinha que ficar afastado quando visse algum, pro caso deles conseguirem voltar a superfície, se não eles me veriam e espalhariam para todos sobre nossa existência. Estávamos bem sem ser perturbados.

Então eu me afastava.

Mas sabe quando você vê algo horrível, e você não quer ver aquilo, mas alguma coisa faz você ver até não dar mais? Aquilo te corrói por dentro, mas você quer ficar ali. Eu sentia isso. Aquilo me deixava inteiramente arrepiado, inteiramente mal, meu corpo pulsava e minha mente dizia ''ajude-os''.

Eu senti isso desde a primeira vez que vi um humano morrer. Mas sabia das consequências se ajudasse-os. Então ficava ali, escondido atrás de alguma rocha, qualquer lugar, e via. Até que uma hora eles paravam de se mexer e fechavam os olhos. Não havia mais ar saindo de seus narizes ou bocas e eles apenas afundavam. Então eu sabia que estavam mortos. Ou talvez não estivessem, talvez só estivessem inconscientes. Mas depois que eu via aquilo, as chances de vê-los voltarem ao estado de antes era tão mínima.

Até que um dia eu vi uma menina.

Ela caiu na água, e começou a afundar. De novo o sentimento de dor veio em mim, a vontade de ajuda-la quase me possuindo, mas então algo estranho aconteceu. Comecei a perceber que ela não se mexia. Quero dizer, todos os humanos que eu já vi se afogarem, sem exceções, sempre se mexiam.

Eles movimentavam todos os seus membros, com todas as forças que podiam, até não conseguirem mais. Movimentavam a boca, aclamando por socorro. Movimentavam os braços, como se algo ou alguém fosse os ver. Tentavam até o último minuto, voltar para a superfície. Morriam com a agonia de não poder respirar mais.

Só que aquela menina não fazia nada disso. No momento em que ela entrou na água, parecia que já estava morta. Mas eu sabia que não. Percebi que ela ainda conseguia respirar. Mas ela não se mexia, seus olhos estavam fechados, e seu corpo imóvel. Ela não protestou, e parecia que simplesmente estava se deixando levar. Ela... queria morrer?

Para me consolar, minha mãe sempre dizia que as pessoas morriam porque aquele era o momento delas.

Ela dizia que cada um tinha o seu momento de ir embora, e que aquele, infelizmente era o daquelas pessoas. Que isso era o ciclo da vida, e não tínhamos escolha. Mas aquela menina tinha uma escolha. Ela não estava ali porque aquele dia foi designado o último de sua vida. Ela escolheu aquilo. Talvez eu deveria ter respeitado sua escolha, mas não pude.

O fato de que aquele dia não tinha sido demarcado o dia final de sua vida, e ela acabar desperdiçando todos os outros que ainda viriam pela frente, me corroeu ainda mais.

E eu só pedia para que ela se recuperasse depois disso.

Fui até ela, que já estava desacordada, mas que eu sabia que ainda tinha chances. Peguei seu corpo e nadei até a superfície. Fui para o lugar onde menos tinha gente, onde poderia passar por mais despercebido.

Chegando lá, deixei seu corpo o mais longe das ondas que pude, e notei o quão bonita era. ''Por que alguém que nasceu com tanta beleza iria querer acabar com sua vida?'' Pensei. Bom, minha pergunta acabaria não sendo respondida. Dei um grito de socorro, e logo depois nadei para longe dali. Alguém escutaria e a ajudaria.

🌊

Algumas semanas já haviam se passado desde o dia em que tinha salvado a menina. Não disse para ninguém do meu cardume, e eu tinha a certeza que nenhum humano havia me visto. Se eu abrisse a boca para falar algo sobre só seria xingado pelos outros, e talvez, até punido. As sereias não gostam de humanos. Os tritões não gostam de humanos.

Mas eu não conseguia parar de pensar na menina. Nunca tinha visto alguém que queria acabar com sua vida. Todas as pessoas que via morriam pedindo para viver mais. Ela já tinha vindo morta.

Seu ato me fez questionar tantas coisas. Fez eu me sentir injusto. Eu nunca salvei alguém que queria ser salvo, e a primeira pessoa que eu ajudei não queria ajuda. Era tudo tão injusto. Eu já estava confuso, disperso em tantos pensamentos desde aquele dia. Me sentia triste o tempo todo. Sempre que eu via alguém afogado aquilo me afetava de uma maneira horrível, e acabava fazendo me ficar mal por dias.

Mas como salvar alguém poderia me deixar ainda pior?

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