4 - Morta-Viva

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Eu sempre gostei dessa palavra: sacrifício. Ela remete a selvagens batendo tambores em torno de uma fogueira. Mas é preciso haver sacrifícios, por mais que isso seja custoso. E perigoso.

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— Um, dois, três, quatro; um, dois, três, quatro... — repito incessantemente; não posso parar. — Um, dois, três, quatro.. — Não posso parar, não posso...

— Boa tarde, Lucy. — Helena me cumprimenta sorridente enquanto adentra na sala, mas não levanto minha cabeça para olhá-la.

Não posso perder minha contagem.

— Um, dois, três, quatro...

— Lucy? — ela arqueia uma sombrancelha, com um semblante preocupado. Embora seus olhos continuem neutros.

— Um, dois, três, quatro...

— Por que você está contando, Lucy? — a loira pergunta. Ela se aproxima de mim e tenta tocar em meu ombro, mas eu reprimo o gesto com um olhar selvagem.

— Um, dois, três, quatro...

O que você está contando, Lucy? — ela insiste, desta vez não se intimidando com meu olhar ameaçador e tocando em minhas costas, o que faz eu perder a contagem.

Droga.

— Responda-me, Lucy — a médica volta a perguntar. — O que e por que você está contando?

— Eu... — começo, mas logo me interrompo. Por que eu estava contando? Eu não me lembro de ter começado a contar, e muito menos o quê.

Um, dois, três, quatro... Será algo importante? Ou apenas a senha de alguma coisa da qual já nem me lembro mais?

Bem, não importa mais. Eu perdi a conta de qualquer maneira.. Na verdade, nada mais importa. Eu já estou aqui há tempo suficiente para saber que eles não irão me soltar tão cedo. Talvez até nunca mais me soltem.

Um, dois, três, quatro...

Devo ser realmente louca, afinal. Mas de que isso importa agora? Não é como se eu fosse encontrar minha sanidade ao admitir isso.

— Olhe para mim, Lucy.

Como é que dizem? A loucura é relativa. Para um louco, ele jamais será um. Isso quer dizer que eu não sou louca?

— Lucy, converse comigo.

Levanto-me, confusa. Se eu acabei de admitir que sou louca, isso quer dizer que eu não sou! Afinal, se eu realmente fosse, eu pensaria que sou normal, não é?

Um dois, três, quatro...

— Eu não sou louca! — grito feliz às paredes brancas, aos meus amigos imaginários e à grande cidade que eu criei em minha mente.

Um, dois, três, quatro...

— Eu sei que não, querida. Mas se você não cooperar conosco e nos provar isso, você não poderá sair — viro-me na direção da doutora que até então eu havia esquecido de que ainda está aqui. — Vamos, Lucy, me ajude aqui e responda às minhas perguntas, por favor.

Viro a cabeça para a direita, observando a loira com curiosidade. Ela não admitiria que é louca, mas é. Isso comprova que a minha teoria está correta?

— O que você estava contando? — sim, eu acho que comprova. — Sente-se aqui do meu lado.

— Não sei — respondo, sentando-me no lugar indicado pela doutora. — Mas também pouco importa. Afinal, nada é útil em um lugar como esse, sem chances de escapatória.

Helena me olha com pena quando digo isso, os lábios levemente curvados para baixo, como se estivesse triste.

— Não fale assim... Você é jovem, merece ter uma boa vida. Você vai se recuperar em pouco tempo e sairá daqui rapidinho, pode ter certeza.

Certeza? Como terei certeza de uma mentira? Sim, eu vejo a mentira estampada nos olhos frios de Helena. Ela sabe que eu não vou me recuperar, ou simplesmente não acredita nisso. Mas afinal, me recuperar de quê? De um crime que eu não cometi? Sendo assim, por que é que eles não me colocam na cadeia de uma vez?

É o que eu pergunto a ela.

— Porque você iria pegar perpétua. E ninguém com a sua idade, erradiando vitalidade e beleza de sobra, merece um castigo como este. Nós te salvamos de um destino cruel, Lucy.

"Eles me salvaram de um destino cruel"? Mas quanta hipocrisia apenas em uma simples frase de sete palavras. O "destino" que eles me colocaram foi bem pior do que passar a minha vida inteira dentro de uma cela. "Vitalidade e beleza de sobra"? Onde está a minha vitalidade e beleza quando tudo o que eles me dão para passar o tempo são três pratos de comida seca por dia e alguns copos d'água? Eu devo estar com uma aparência horrível, isso sim, como a de uma morta-viva.

Um, dois, três, quatro...

É assim que eu me sinto: uma morta-viva. Sem praticamente nenhuma vitalidade ou beleza. Sinto-me quebrada, e as palavras motivacionais e positivas que a psicóloga à minha frente não ajudam nada a consertar isso.

Um, dois, três, quatro... Até onde poderei contar quando eu estiver a beira da morte definitiva?

InsanaMENTEOnde histórias criam vida. Descubra agora