Capítulo Único

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Lysandre respirou fundo, aspirando a brisa doce da primavera, expirou, e depois riu, amargo. Ainda não fixara na mente a ideia de que não precisava mais respirar, mesmo após tanto tempo. Mas era um processo natural, inconsciente, resquícios de quando estava vivo.

Vivo.

A palavra tinha um sabor ácido. Trazia memórias demais, em uma intensidade tão, tão grande que ele preferia varre-las para longe de seus pensamentos. Essa era a pior parte. As lembranças faziam-no recordar de como sua vida era antes daquilo acontecer. Lysandre desejava a vida antiga de volta, cultivava uma centelha inútil de esperança no âmago. E ele odiava o desespero crescente de querer algo e jamais poder conquistá-lo.

O pós morte tinha se revelado algo muito surpreendente e irônico. A morte tinha vindo a seu encontro, obrigando-o a a abandonar seu corpo, e tinha deixado os velhos sentimentos terrestres como presente. Era perturbador. Dia após dia, ele apenas vagava sem direção, carregando nas costas o peso de seu passado.

Atravessar as pessoas ainda era estranho para ele. Obviamente, não sentia nada. Tampouco elas, além de alguns arrepios. Eram constituídas de matéria, tinham o sangue quente, o coração pulsava. Tum, tum, tum, tum, tum. O som agora o inquietava.

A paisagem deu lugar a um prédio conhecido. Uma caixa de sapatos cinza, seria como ele definiria Sweet Amoris. Lysandre sorriu. Não havia nem percebido como chegara ali. Estava tão imerso em si próprio que não prestara a menor atenção ao caminho que seus pés tomaram. Mas já que se encontrava em frente à escola, não faria mal entrar só um pouquinho. A última vez que estivera ali fora há mais de três anos.

Poucas coisas haviam mudado. Os longos corredores estavam vazios, as salas de aulas com as portas fechadas, e o grêmio estudantil não se situava mais no mesmo lugar. Quando espiou dentro do cômodo, esperou encontrar um loiro de semblante sério, mas tudo que viu foi uma secretária teclando furiosamente. Nathaniel já tinha terminado o ensino médio, como todos os outros. Ele sabia disso, presenciara a graduação de seus amigos.

A Senhora Shermansky não era mais a diretora. Morrera de pneumonia, no conforto de sua casa, com o cabelo tão branco quanto a neve. Ele não a encontrou do outro lado do túnel, então supôs que cada um tivesse um fim diferente. De qualquer forma, Delanay quem dirigia a escola agora. Com mãos de ferro, é claro. Dava para sentir pena dos alunos.

Passo após passo, ele atravessou os corredores. Conseguia escutar a baderna dos alunos e a voz de um professor quase implorando para que se aquietassem. Seria Faraize? Se conseguisse se concentrar o suficiente, tinha certeza de que poderia identificar o timbre baixo e um pouco desafinado da voz dele.

Biblioteca, sala dos professores, laboratório. Fragmentos de diálogos, momentos vividos em cada um desses lugares vinham a sua mente. Mas nada era tão memorável quanto o porão. Fora ali a primeira vez que a conhecera. Cabelos castanhos longos, olhos verdes, rosto delicado e uma expressão determinada e assustada no rosto. Estivera ali para desvendar o mistério por trás do "fantasma da escola". Acabara conhecendo-o e, eventualmente, tornaram-se bons amigos. Lynn era sempre gentil e disposta a ajudar; não media esforço para socorrer um amigo, porém terminava encrencada em diversas ocasiões. Ah, a curiosidade e teimosia dela não tinham limites.

Fora por isso que ele se apaixonara? Não sabia, nem nunca soubesse exatamente o porquê. Tinha se apaixonado tão sutilmente quanto um nascer do sol, gradual e lentamente. Mas fora algo tão brando que se viu surpreso ao constatar que seus pensamentos se desviavam para a curva de seu sorriso, o pulso se acelerava ao vê-la, as bochechas coravam com mais frequência. Teve de admitir para si mesmo que a amava.

O primeiro beijo de ambos concretizou o que sentia, embora não precisasse de confirmação. Embebedara-se com o sabor dos lábios de Lynn e sentira-se tonto de paixão, desejo, ternura, carinho. Seu coração transbordava de amor por ela e ele queria mais e mais e mais.

E poderia ter tido tanto, tanto, tanto. Se o maldito acidente de carro não tivesse acontecido... Poderiam ter tido um futuro juntos, uma casarão ao estilo vitoriano, uma família. Quanto mais ele teria perdido?

A questão o assombrava todas as vezes que passava por sua mente. Ele continuaria no plano astral, ou limbo, ou que quer fosse, e a vida seguiria normalmente. Lysandre desenvolvera o hábito masoquista de volta e meia conferir como os antigos amigos estavam. Tinha, agora, uma sobrinha: Melissa, que herdara o cabelo negro do pai e os olhos âmbar da mãe. Sempre que podia, gostava de sussurrar algumas canções de ninar em seu ouvido, observando-a estender os dedinhos em sua direção.

O hábito lhe rendera um choque ao descobrir o paradeiro de Castiel. O amigo continuava na cidade, morando em um apartamento confortável no centro. Mudara o cabelo, adotando o negro natural. Estava mais relaxado, maduro e sorria usualmente. Conservava a guitarra de anos em um cantinho especial e deixava alguns prêmios musicais visíveis nas prateleiras de madeira.

Entretanto, não foi isso que o chocou. No fundo, tinha a consciência de que Castiel ajeitaria a vida. Quando avistou uma silhueta feminina erguendo-se para beija-lo com delicadeza, percebeu que era Lynn. Bela, sorridente... e grávida. De seu melhor amigo. Não tinha erro. A barriga estava definida e marcada sob o tecido do vestido.

O que podia esperar? Que ela envelhecesse e ficasse de luto por ele por toda a vida? Não, não. Deveria se sentir feliz por ela ter seguido em frente.

Mas não era assim que se sentia. Porque aquela vida deveria ter sido sua. Fora roubada num piscar de olhos, como todas as ilusões que tinha para o futuro. Mas ele já não detinha poder sobre isso.

Assim, acabou acolhendo a solidão. Com ela, foi embora para um lugar distante, onde não teria notícias do destino que antes era reservado a ele, e juntos sussurravam se a morte, algum dia, teria sido piedosa.

How to Hate DeathOnde histórias criam vida. Descubra agora