Capítulo 1

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- Isso não é um dragão, tonta. É um dinossauro! – afirmei entre uma ou outra gargalhada forçada enquanto lhe esborrachava o brinquedo de plástico gasto contra as suas pálidas e gélidas bochechas.

- É impossível, tem asas! – confirmou inspecionando todos os pormenores daquela imitação de um antigo animal que parecia uma mistura de crocodilo prestes a ter um enfarte com a minha cara de falta de sono dos últimos dias.

Pensei nas inúmeras espécies voadoras daqueles gigantescos répteis que habitaram o nosso planeta quando tudo era perfeito, mas sabia que me engasgava sempre que tentava verbalizar algum, por isso, restringi-me ao básico:

- Não são asas, são placas que servem para manter a temperatura corporal e para defesa dos predadores.

- Não me parece... Como é que sabes todas essas coisas?

Apenas sorri. Reparei que ficou confusa, mas não conseguia transmitir mais nada. Senti que aquelas horas sem fim a ler livros na sala de espera afinal serviam para alguma coisa. Serviam para aquele momento mágico. E eu apreciava cada simples pedaço dele.

Todos os pormenores fúteis sobre mim são completamente dispensáveis, mas sobre ela não. Porque existem pessoas que nasceram para serem admiradas, vislumbradas, contempladas,... lembradas. A perfeição é simplesmente um tipo de beleza visto pelos olhos de alguém que é incapaz de apontar defeitos a quem a possuí. Allyson era um retrato maravilhoso de tudo isto. A inocência dos seus sete anos contrastava com a força avassaladora que transmitia em tudo o que fazia. Os seus longos cabelos ruivos, que insistia em manter irrepreensivelmente presos por dois elásticos, encontravam-se estragados e emaranhados, com um comprimento hediondo (um pouco acima dos ombros) mas que os médicos consideravam ser a melhor opção para preparar a "frágil lutadora" para qualquer tipo de choque. Mas o que poderia ser pior do que estar vinte e quatro horas, sete dias por semana, fechada num quarto onde, de forma confortável, só era possível encaixar uma família de elfos anões? Não foram poucas as vezes que me revoltei por sujeitarem a minha irmã a um ambiente pesado, com cheiro a xarope fora do prazo combinado com limpeza excessiva, onde a única fonte de luz natural era uma janela com pouco mais meio metro quadrado que, para piorar aquela situação degradante, estava encravada e só abria até dez centímetros. Ironicamente, todas as tentativas foram em vão e desejei ter idade suficiente para encostar a minha mão à cara estupidamente delicada do médico principal, sem ser julgada.

Voltando a Allyson... Até para uma menina que nunca fora muito bronzeada, o seu tom de pele começava a tornar se sinistro. As veias mais salientes estavam demasiado visíveis. Encontrava-se, simultaneamente, cada vez mais magra. Eu, os meus pais, os médicos e todas as outras pessoas que nunca se importaram realmente com nenhum de nós, mas insistiam em passar pelo quarto 281 só para nos relembrar de forma mais intensa que o fim poderia estar próximo, tentávamos que ela se alimentasse com mais afinco e que encarrasse o momento de refeição como mais um dos muitos comprimidos que tinha de ingerir ao longo do dia. Mas não pudemos exigir apetite a alguém que passa os dias deitada na cama, desperdiçando energia a brincar com aquilo que as enfermeiras lhe atiram para cima.

Apenas os seus olhos castanhos pareciam manter toda a vivacidade como, se de cada vez que olhasse para qualquer uma das criaturas presentes naquele hospital, visse esperança. Pelo menos era o que eu entendia naquela altura. Hoje, sei que provavelmente via muito mais do que isso. Muito mais do que qualquer um de nós pudesse ver.

- Vai para casa... - ordenou de forma subtil uma figura feminina que me fitava, com olheiras fenomenalmente maiores do que as minhas. O colarinho da sua blusa amarrotada encontrava-se encharcado de lágrimas. Ao contrário do de Allyson, há muito que aquele olhar sombrio perdera a esperança. Naquele momento encontrava-se ainda mais pálida do que a minha irmã, um fenómeno raro.

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