Baloiçava o meu corpo de um lado para o outro do corredor, com a sereia Lilly encostada contra o meu peito. Penso que a equipa médica memorizou as minhas perguntas, pois colocava-as sempre que alguém com bata branca e ar frio passava por mim, mas nunca obtinha resposta. Apenas me eram lançados olhares vagos e tristes.
No meio da confusão, gerada por um tornado de palavras não ditas, limitei-me a pensar. Logo surgiu uma quantidade infinita de memórias. Memórias que nada tinham a ver com aquele sinistro e desapontante hospital. Senti o cheiro da relva e terra molhada do parque da cidade. Allyson devia ter uns quatro anos; eu, estava naquela fase da vida em que nos começam a tratar como adultos, ao mesmo tempo que criticam o desaparecimento da nossa infantilidade. Independente de tudo, foi para aquele momento que o meu cérebro me transportou. Naquela altura, toda esta minha fantasia de ocultação de pormenores menosprezáveis sobre mim mesma tinha começado. Detestava que as pessoas me fixassem durante longos períodos de tempo, fazia-me sentir estranhamente observada. Ora, quando Allyson gritava o meu nome com uma voz histérica ou corria até mim com uma felicidade que só as crianças possuem, toda esta minha bolha de proteção, criada por um livro rodeado por cabelos castanhos e um conjunto surpreendentemente discreto, rebentava. Somente sorria com aquele ar de "desaparece" ou apenas ignorava. Mas ela não se dava por vencida. Tentou por várias vezes levar me para junto dos baloiços para a "fazer chegar as nuvens" ou mostrava me como era uma excelente caçadora de escaravelhos. Pobre Allyson. Nada. Estava demasiado ocupada a não fazer nada. Como o habitual. Sentei me no chão fresco do hospital e levei as mãos aos olhos. Meu deus, como gostaria de estar naquele parque outra vez... Poder baloiçá-la naquele baloiço usado, apanhar uma série de insetos e explicar-lhe algumas das suas características, vislumbrar com atenção o seu rosto iluminado pelo ténue sol de primavera enquanto os seus cabelos ruivos esvoaçavam. Enxaguei a lágrimas. Não podia regredir no tempo e mudar o passado.
Olhei para a sereia Lilly e sorri. Fechei os olhos e logo à memória me vieram recordações daquela tarde fria de novembro. Fora no ano anterior, pouco tempo antes de descobrirem a doença de Allyson. A nossa cozinha, em poucos minutos, tinha-se transformado num campo de batalha infantil. Farinha nos balcões, cascas de ovos no lava loiça, açúcar no chão e mel por todo lado. Era a primeira vez que Allyson fazia algum tipo de receita e, sinceramente, a minha também. Aqueles pequenos muffins estavam "incendiados" por cima e absolutamente crus na base. Não conseguíamos parar de rir, não sei se pelo cheiro a queimado ou pela cara de espanto da minha mãe. Ela sabia que nenhuma de nós se ofereceria para limpar aquela desordem. Em vez disso, pedimos desculpa como dois anjinhos. Ninguém era capaz de resistir à ternura transmitida pelo olhar de Allyson.
O tempo teimava em não passar, bem como os médicos. Há cerca de vinte minutos que não via nenhum ser rude vestido de branco, o que, pela primeira vez, começava e incomodar-me. Apercebi-me que também os meus pais tinham desaparecido. Estava em pânico, sozinha numa desconfortável sala de espera e sem algum tipo de explicação. Desviei o olhar para a esquerda e visualizei uma senhora que pintava as unhas. Verniz...!
Tinha sido a pior asneira do mundo inteiro, segundo Allyson. Estávamos sozinhas em casa, completamente entediadas pela chuva que não parava de cair. Lembrei-me que tinha visto um vídeo sobre nail art e decidi acabar com aquela sessão de filmes, que já vira reproduzidos naquela estação de televisão mais de vinte vezes. Propus fazer-lhe umas unhas com flores azuis e violeta, pois parecia ser o mais simples. Ficou eufórica. Correu até ao quarto dos nossos pais e retirou todos os vernizes que se encontravam em cima do tocador. Infelizmente, toda aquela magia de "unhas que todas as minhas amigas vão adorar e ninguém vai ter igual na escola" acabou em pouco tempo. As suas pequenas mãos apresentavam uma relação de proporcionalidade direta com as suas garrinhas. Eram ridiculamente pequenas e, o máximo que consegui fazer foram três microscópias flores do polegar. Para piorar a situação, no meio da toda a minha raiva por não conseguir fazer um trabalho perfeito, entornei algumas gotas de verniz na mesa da sala de jantar, onde todo aquele trabalho em vão decorrera. Preocupada com a reação dos meus pais ao repararem que a peça principal daquela divisão da casa estava sarapintada por salpicos azuis, Allyson apressou-se em tentar reparar o estrago. Foi o fim. Limpar os resíduos que se encontravam numa mesa de carvalho perfeitamente envernizada com um mar de acetona não foi a ideia mais inteligente. Mas Allyson só tinha seis anos, era incapaz de saber que aquilo ia transformar uma peça de utilidade e decoração "absolutamente artística", como a minha mãe gostava de referir, numa mesa com uma mancha de madeira mais clara. Fiquei sem saber o que fazer. Se contássemos à minha mãe, bem que podíamos dizer adeus aos vernizes. Mas, de qualquer modo, já tínhamos atribuído àquela mesa um fim triste: o lixo. Por isso, não tínhamos muito por onde nos queixar. Foi então que a minha irmã teve uma ideia de génio: pintar aquele desastre com verniz transparente. Ri-me tão alto que todo o prédio deve ter ouvido. Era pouco provável que resultasse, mas não custava nada tentar. Qual o resultado final? Uma mancha castanho deslavado com brilho! Ia tudo de mal a pior, e o relógio não parava com o seu repetitivo tic tac, tic tac, tic tac,... que indicava que os nossos pais podiam chegar a qualquer momento. Tinham-se esgotado as ideias para salvar a mesa da lixeira e os nossos ouvidos de um sermão, dos grandes. Subitamente, olhamos para a arca que se encontrava no canto da sala e tivemos a mesma reação: pegar numa toalha de renda e sobrepô-la sobre a mesa. Resultou. Nunca ninguém deu pela mancha, nem tão pouco pelo napron. Na verdade, toda a alegria acabou pouco tempo após deste incidente, porque duas semanas depois Allyson foi encaminhada para o hospital. Credo, como o tempo tinha passado depressa! Consigo lembrar-me de todos os pormenores como se fosse uma memória recente!
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Sombras
Romance"Sombras" conta a história de uma jovem de 16 anos que perdeu a total confiança no caminho da sua vida. A ação decorre em volta de uma série de mistérios, começando pelo nome da própria personagem principal. Que acontecimentos impedem a protagonis...