A época era em meados da década de 70. Tátia Carmem, estudava em uma das escolas estaduais bem próxima à sua casa, na Escola de 1º Grau Estado do Amazonas. O uniforme, era uma blusa branca com bolso na lateral esquerda onde se encontrava o brasão da escola. A saia, era azul, toda com pregas, duas pequenas faixas brancas na horizontal que circundava por toda ela bem próxima a altura dos joelhos. Não muito longa, não muito curta, afinal, as moças da época não poderiam despertar os olhares curiosos dos rapazes – mesmo que elas fossem uma brasa.
Nos pés, um conga – o sapato esportivo da época, adereçado com cadarços de cor branca, compunha o uniforme rigorosamente inspecionado pela direção da escola. O regime militar vivido na época, primava pelos bons costumes e pela ordem. A uniformização nas escolas seguiam um padrão, que, neste momento, Tátia Carmem descobriu não cumprir.
Dona Rosa Virgina, sua mãe, uma dona de casa que tivera na época 09 filhos, viu passar pela porta de sua casa, em direção a cozinha onde ela estava, uma menina com os olhos lacrimejados. Ao aproximar-se, jogou-se em uma das cadeiras dispostas ao redor da mesa da cozinha. Dona Rosinha – como carinhosamente era chamada por todos no bairro, perguntou a sua filha o que havia ocorrido. Era véspera da proclamação da independência do Brasil. E como já havia falado com os seus pais sobre a exigência para participar no desfile patriótico a urgir no dia seguinte, entoava um semblante choroso por saber que os seus sapatos – conga, eram pretos e por este motivo não participaria do desfile.
O senhor Lucas, seu pai; ex cabo do exército brasileiro em sua juventude; jogador da categoria de base do time do Fortaleza Sport Clube; funcionário da Secretaria da Educação do Estado, era ao mesmo tempo inventivo e solícito em alguns momentos de sua breve vida. Como não havia dinheiro para comprar um sapato novo, teve então a fantástica ideia de pintar os sapatos outrora pretos de brancos. Na mesma manhã, levou os sapatos de Tátia Carmem ao fundo do quintal. E munido de rapidez e intrepidez – pois desejara aproveitar o calor do sol que fizera nos últimos dias para a secagem de sua obra-prima, foi dando um ar de alvo como a neve para o antes sapatos pretos.
No dia seguinte, aprontando-se para a marcha triunfal, o coração de Tátia Carmem pulava de alegria ao ver os sapatos – conga, antes negros agora reluzentes. Sim, sim, eu vou marchar agora, pudera ter pensado a pequena aprendiz da vida. Marche compassadamente e belamente linda garotinha. O uniforme para a ocasião era de uma blusa branca, saia como de uma tenista e – porque não, um par de tênis branco. "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas..." tambores e o som viril dos marchantes sobre as pedras de calçamentos ora defeituosas e pontiagudas ora faltantes de seu lugar. Assim iniciou-se o desfile da amada pátria!
Marche menininha, marche... o sol está escaldante mas reluz em seus lindos sapatos – conga, brancos. Marche, marche. O suor era visível, mas a emoção das passadas e ali a frente a bandeira do Brasil e o povo nas calçadas aplaudindo o desfile era o mais importante. 28 ou 35 graus pela manhã não eram obstáculos para Tátia Carmém, afinal, morar no Ceará é saber que o sol predomina. Entretanto, morar no Ceará também é saber que as coisas mudam, o tempo muda.
Então, uma nuvem no céu. Sim. Aquela luz que castigava a pequena patriota agora dava um alívio. Era apenas uma nuvem. Mas esta nuvem, tinha vários quilômetros. O tempo mudou. O que antes fazia o seu sapato – conga, se destacar brilhantemente, agora não mais. Marche pequena, apenas marche...
O que foi isso? Pensou Tátia Carmem. Uma gota caíra sobre o seu rosto meigo. Marche... "oh pátria amada, Salve, salve..." E, com um gesto simples, Tátia Carmem estende uma de suas mãos e contempla as gotas de chuva cair cada vez mais forte. Mas ela estava obstinada e seguir em frente, afinal de contas era 07 de setembro, era cível, era um dia raro. Raro por ser comemorado uma vez por ano. Raro, também era chover no Ceará.
Seu pai – Lucas, fizera o que pode em sua voraz criatividade. Só não contava que, justo no dia da independência do Brasil, resolvesse chover. De seu trabalho, contemplou os céus e viu as nuvens que traziam o que nós cearenses muito desejamos – um pouco de chuva para aliviar o calor do dia. Em suas lembranças, refez as pinceladas árduas que deu nos sapatos de Tátia Carmem – um conga, no dia anterior. Vai ficar firme, deve ter pensado de forma confiante pois raro era encontrá-lo abatido, preocupado, desmotivado.
E no desfile, agora com uma neblina que refrescava a todos, Tátia Carmem sorria em cumprir já agora boa parte do percurso. Levantava os seus olhos para o céu e com uma criança inocente, sem mácula, feliz pelo seu dia, marchava incansavelmente. Foi quando, ainda mergulhada em seus delírios em verde e amarelo, ouvia uma voz que lhe indagava logo atrás dela:
— O que é isso? - uma amiga perguntou.
Ela – Tátia Carmem, vira-se para a amiga com um sorriso no rosto. A sua amiga, apontava para o chão e ambas viram uma pequena correnteza que esguiava-se em meio aos paralelepípedos da rua. E, o mais curioso, é que não tinha a transparência das águas de chuva. Ela era de cor branca.
— Olha! - Gritou a amiga apontando agora para os sapatos da feliz Tátia Carmem. - O seu sapato está mudando de cor!
Sim. Nem mesmo os anos de exército e toda a boa vontade do senhor Lucas poderia ir de encontro a natureza perspicaz. E agora pobre menininha? O que fazer? Aos poucos se avistava a chegava de volta a escola, mas uma pergunta batia em sua cabeça no mesmo ritmo das baterias logo a sua frente: Quanto tempo... por quanto tempo a cor do meu sapato – conga, irá durar? Apresse-se meninha, está bem perto, bem perto.
O rastro de tinta misturava-se agora as lágrimas que escorriam pelo seu rosto angelical. Misturadas com a água da chuva fraca, não dissolviam a tinta n'água. Ah se antes os que contigo desfilavam apressassem os passos... mas não dava mais. A tinta usada pelo seu pai – o senhor Lucas, não conseguia mais resistir.
Só havia algo para fazer. Olhando para os lados viu uma saída. Uma parte do grupo não cumpriu o prometido de serem coesos, firmes e compassados. Parecia um corredor para a sua fuga. E assim, cantando o hino nacional brasileiro, Tátia Carmem se dirigiu a única saída que estava despertando em sua mente. E quando os marchantes se dirigiam em frente, Tátia Carmem fez a meia volta... volver.
Chegando em casa, ao final do trabalho, o senhor Lucas perguntara como havia sido o desfile outrora ocorrido. Sua esposa, Dona Rosinha, olhou-o nos olhos. E mostrando o pote de tinta usado, respondera:
— Teria sido muito bom, se você não tivesse usado tinta gauche...
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Contos de famílias excêntricas
RandomUm sapato esquisito e com vontade própria. Ou até mesmo escovar os dentes com pomadas ao invés de creme dental. Sair de férias sem ver antes a casa alugada e dar de cara com um cenário de guerra. Mas quem sabe, talvez você nunca tenha se apaixonado...