Gávea, berço do C.R. Flamengo, Rio de Janeiro, 2046.
A imagem de um urubu refletida no visor que substituía os olhos daquele pedaço de lata revestido por pele sintética, chamava a minha atenção. Mantenho meus olhos nele, ainda meio tonto, e consigo notar que tal criatura observava tudo com tamanha morbidez, enquanto eu ensaiava uma queda acrobática em campo. No gramado, rosto voltado para a grama sintética, uma contagem mental teve início em minha mente:
10...
9...
8...
7...
"Não, não vou virar comida de urubu". Disse a mim mesmo. Talvez por isso, Alfredo Borba, um dos assistentes técnicos responsáveis pela peneira, tentou me animar ao exaltar palavras de incentivo que qualquer "amigo" faria.
- Levanta seu fraco, volta pra marcação! Tá sem vontade de jogar, saí...
De súbito, não entendo o que ele quer dizer. Pois, antes do meu sistema nervoso entrar em colapso por alguma espécie de hacker biológico, que bloqueou todos os meus movimentos, eu achei que não havia faltado vontade. Desprendi uma força e coragem sem igual que me fez disputar ombro a ombro, quase igual a uma corrida genética onde dois espermatozoides brigam para provar um ao outro quem merece ganhar o ônus da criação. Será que, depois de tudo isso, sem forças e algemado nesse gramado, ele iria pensar que estou morto? Seria a hora de finalmente me abater?
- Mas que droga. Tá esperando o que, Mário? Uma marcação de falta? Foi coisa nenhuma não, levanta daí seu mole!
Ele tá rindo de mim, da minha agonia, da minha incapacidade, tenho certeza. Maldito seja! Fica aí abanando essas asas enquanto observa tudo de longe. Animal moribundo!
- Fábio, por favor, vai ali e segura o Mário. Ele precisa de ajuda. Olha só isso. O cara tá cambaleando igual a um bêbado e ainda por cima fica encarando o Urubuzada*. Que vexame!
Seus olhos não me enganam. Eu sei quais são seus objetivos e onde você quer marcar o gol. É você que controla essas inúteis. É você também que comanda essa farsa que chamam hoje de futebol ultra-futurista. Então, finalmente, é você que vai se satisfazer com minha morte... mas não! Não mais irei cair. Jamais. Tá me ouvindo? Não irei!
Sinto alguém me segurando pelos braços, o centro do meu corpo fica confuso, não sei se estou mais com os pés no chão. O campo gira 90 graus, em uma parábola deveras interessante. O céu cai sobre mim, ao mesmo tempo que creio ter caído sobre ele.
E foi assim que o futebol mudou nos últimos anos, em uma reviravolta o esporte deixou de ser uma simples disputa entre jogadores para se tornar a máxima expressão de um modo de vida baseado no consumo da imagem e da publicidade desenfreada. Um mundo onde há mais torcedores e consumidores, e cada vez menos jogadores. Difícil imaginar? Para qualquer habitante de outro tempo pode ser embaraçoso enxergar anos à frente, e prever, principalmente, a vida que leva qualquer ser humano depois do avanço exorbitante que a tecnologia evoluída da inteligência artificial, do pós-terceira guerra mundial de 40, conseguiu alcançar.
O choque definitivamente comprometeu minha sanidade. Me sinto zonzo, com os olhos turvos, leve falta do ar. É nesse momento que sou carregado por alguém até a saída do campo, meu pensamento embarca agora em uma espécie de Idade Média, mas não a dos livros digitais de história, uma era diferente e recente, mas tão dura quanto. O período que vivo é de um crescimento científico elevado, onde a ciência é tão exata que o jogo de futebol passou a se tornar uma matemática pura e aplicada. Uma vida em que a tecnologia mata a arte e substitui sua essência. E pensar que deixamos tudo isso obscurecer quando passamos a permitir que a mão livre do mercado pudesse controlar qual time deveríamos jogar ou por quem. A mesma mão que toca agora no meu peito enquanto uma voz sussurra em meu ouvido: "Seu coração tá um lixo. Já pensou em vendê-lo para comprar um biônico?"
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O OLHO DO URUBU
Science FictionEm um mundo distópico onde a racionalidade domina quase todos os campos da sociedade, um jovem carioca tenta entrar para um time de futebol futurista. O que Mário Andrade não sabe, é que quando ele decide participar de uma peneira em 2046, para o C...