Subterfúgio Existencial

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Em sua vida deprimente e monótona, Matheus colecionava frustrações e ressentimento.

Não havia um só dia que não amaldiçoava o motivo de estar vivo. Odiava tudo e a todos. Odiava seu emprego, sua péssima vida amorosa, odiava ter de conviver com as pessoas de seu trabalho, inquietava o mero detalhe de estar vivo em um mundo com sofrimento e desgraça, de seguir a mesma rotina odiosa de sempre. Apenas uma coisa trazia a Matheus algum alívio, alguma catarse para sua decrépita existência.

Matheus escrevia contos.

Ao menos uma vez em sua miserável vida, Matheus se sentia poderoso. Ele utilizava a dinamicidade da plataforma Wattpad e criava inúmeros contos sobre as mais variadas situações que seriam completamente impossíveis de se conceber na vida real.

Ele agia como um próprio deus onipotente e manipulava cenários, desenvolvia personalidades, inventava conflitos e relações, e todo tipo de situação inusitada. Mas não pensem que Matheus era por assim dizer, um benévolo tirano.

Matheus gostava de sofrimento, e seu sofrimento era projetado em suas histórias.

Todo dia após chegar de seu trabalho, Matheus imaginava uma situação horrível a uma pessoa. Um claustrofóbico que tem sua morte decretada erroneamente e é enterrado vivo, sem chances de gritar por ajuda. Um companheiro de trabalho, já idoso e avesso a tecnologia, despertando em um mundo distópico e tecnicista onde a carne e o frio metal da tecnologia se confundem e sua humanidade pouco vale.

Matheus via prazer no sofrimento de uma mãe a perder seu filho ao serem atacados por uma espécie mutante de raça alienígena. Um pequeno bebê sendo devorado em frente a uma mãe impotente.

Matheus sabia exatamente quais temores ele poderia evocar para destruir a mente de cada personagem e, inebriado com esse poder, com esse controle sobre a vida humana, descontava sua raiva nesses personagens fictícios tão facilmente identificáveis na vida comum.

Chame isso de projeção, de um esvaziamento de frustrações por meio da literatura, chame da merda pseudointelectual que quiser. Matheus não se preocupava com o que significavam seus contos, ele apenas os escrevia porque eram nesses pequenos momentos em que realmente se sentia feliz. Não importa se seus desejos eram doentios, Matheus sabia que cada dia de sua vida era um desperdício e que somente suas histórias seriam de fato libertadoras.

Após uma noite de sábado, onde pouco lhe interessava sair, Matheus se vê uma vez, bloqueado... sem criatividade para criar seu pequeno conto de tortura. Tinha toda uma ambientação de futurista de ficção científica em mente, mas não conseguia pensar numa narrativa.

"Mais café, talvez seja o que preciso" seria o que escutaria se outra viva alma estivesse neste pequeno apartamento junto com Matheus. Já havia horas que não dormia e ele sabia que não pregaria os olhos enquanto não torturasse alguém em sua imaginação.

Ao sair de seu quarto em direção à cozinha percebe que já não está mais em sua casa. Não parecia em nada com o que tinha visto antes, mas sem dúvida era um ambiente de certa forma... familiar.

Todas as luzes, a complexidade de fios e eletrônicos nas paredes, dava-se a ideia de um ambiente futurista. Corpos dessecados pendurados na parede, bizarras experiências mutantes e um pútrido odor de degradação da carne humana estava no ar, ele estava obviamente em uma de suas histórias da plataforma Wattpad.

"Devo procurar um lugar para sair daqui" pensou Matheus em voz alta. Pressentia que não tinha o mesmo poder como personagem como tivera uma vez como autor. Tudo o que lhe restava era a fé que este autor desconhecido da história que ele agora era protagonista, tenha alguma piedade que ele nunca demonstrou.

"Por favor" vociferou Matheus. "Que eu tenha mais uma chance de ter minha vida de volta".

"Eu aceito meu destino, na verdade eu poderia mudar minha vida, ter novas experiências... Eu tenho também ideias para belas histórias de amor, histórias de aventura."

Uma misteriosa porta então se abre. Matheus pode ouvir palavras humanas que lhe confortam o coração e, decidido a mudar seu rumo de vida, desbrava valentemente pelo caminho agora aberto.

Assim que caminha pelo corredor, pequenos robôs o seguram pelas juntas e o levantam do solo. Era tudo um sujo truque e, por mais que Matheus inutilmente tentasse lutar, pouca resistência podia ser oferecida a esses pequenos monstros de incrível força.

Logo, Matheus é levado para uma fria maca com diversas luzes apontando para o centro, pouco se pode ver ao redor devido a força que elas fazem em sua vista, mas ele consegue observar à distância o contorno grotesco e a aparência repugnante de formas de vida que apresentam um insulto à estética.

Seu linguajar profano faz com que sua conversa seja secreta, mas que suas intenções sejam bem claras. Matheus será dissecado, e eles querem que Matheus esteja vivo para o procedimento.

Logo todos os equipamentos penetram seu corpo e cortam sua pele. Brocas e serras vão lentamente desmembrando o objeto de estudo humano aos olhos de todos os monstros e criaturas que o encaram. Por algum medicamento obscuro e futurista, Matheus se mantém acordado em toda cruel experiência.

Matheus sabe, essa é a história que estava bloqueada em sua mente, um grande final para sua coleção de contos de ficção científica finalmente toma vida e Matheus é o protagonista em sua própria história doentia.

Matheus nunca mais terá de viver um só dia de sua miserável vida, agora ele vive em suas próprias histórias, e nada poderá acontecer para que ele seja resgatado de sua terrível história.

Subterfúgio ExistencialWhere stories live. Discover now