Capítulo 6:

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O RITUAL MUSGRAVE

UMA ANOMALIA QUE SEMPRE me impressionou no caráter do meu amigo

Sherlock Holmes era que, embora em seus métodos de pensamento fosse tão

ordeiro e sistemático quanto um homem pode ser, e embora também gostasse de

se vestir com discreta e meticulosa correção, era em seus hábitos pessoais um

homem terrivelmente desmazelado, capaz de levar um companheiro de

apartamento ao desespero. Não que eu mesmo seja convencional sob esse

aspecto, em absoluto. A luta caótica no Afeganistão, vindo coroar uma disposição

naturalmente boêmia, tornou-me mais relaxado do que convém a um médico.

Mas no meu caso há um limite, e quando encontro um homem que guarda os

charutos no balde de carvão, o tabaco na biqueira de um chinelo persa e sua

correspondência não respondida transfixada com um canivete exatamente no

centro do aparador da lareira, começo a me sentir a personificação da ordem.

Sempre sustentei, também, que o tiro ao alvo era sem dúvida um passatempo

para o ar livre; mas quando Holmes, num de seus estados de espírito esquisitos,

aboletava-se numa poltrona com uma centena de cartuchos Boxer e passava a

adornar a parede oposta com um patriótico V.R. desenhado a bala, eu tinha a

forte impressão de que nem a atmosfera nem a aparência da sala eram muito

favorecidas.

Nossos aposentos estavam sempre cheios de substâncias químicas e relíquias

criminais, que sempre conseguiam se meter em cantos improváveis, vindo a

aparecer na manteigueira ou em lugares ainda menos desejáveis. Mas meu

grande tormento eram os papéis dele. Holmes tinha horror a destruir

documentos, especialmente aqueles associados a seus casos pregressos, mas só

uma vez em um ou dois anos reunia energia para indexá-los e organizá-los;

porque, como mencionei em algum ponto destas memórias desordenadas, os

arroubos de energia apaixonada com que ele levava a cabo os feitos notáveis a

que seu nome está associado eram seguidos por reações de letargia, durante as

quais ficava deitado com seu violino e seus livros, mal se mexendo, exceto do

sofá para a mesa. Assim, mês após mês, seus papéis acumulavam-se, até que

em todos os cantos da sala empilhavam-se montes de manuscritos que não

deviam ser queimados de maneira alguma e não podiam ser removidos senão

por seu dono. Numa noite de inverno, quando estávamos juntos ao pé do fogo,

arrisquei-me a sugerir-lhe que, como acabara de colar recortes em seu álbum,

poderia dedicar as duas horas seguintes a tornar nossa sala um pouco mais

habitável. Não podendo negar que meu pedido era justo, ele se dirigiu com uma

expressão muito pesarosa para o seu quarto, do qual logo retornou arrastando um

grande baú de folha de flandres atrás de si. Colocou-o no centro da sala, sentou

As Memórias De Sherlock HolmesOnde histórias criam vida. Descubra agora