Terra Matre

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A imensidão branca parecia não ter fim e o vento gelado uivava como um lobo em
torno da estação de pesquisas na Antártida.  Michel havia acabado de acordar e sabia que teria um dia cheio. Ao sair da cama, vestiu suas roupas de lã e por cima um macacão revestido de plumas, calçou as botas de neve e seguiu até o refeitório para tomar seu desjejum. Diariamente o café-da-manhã consistia em pão, queijo, sopa enlatada e muita água. A água deveria ser tomada o dia todo para evitar a desitratação. Ao entrar no refeitório viu Sacha sentado à grande mesa central tomando uma sopa e lendo algum relatório. O amigo ao notar sua presença já foi falando :
— Bom dia! É melhor você se alimentar bem, pois lá fora está 32 graus negativos e temos que continuar as coletas.
— Trinta e dois negativos! — espantou-se Michel. — A temperatura caiu dez graus durante a noite.
— Sim, então trate de comer uma refeição adequada e colocar uma camada extra de roupas. Saímos em uma hora.
A estação de pesquisas era mantida por vários países que enviavam seus cientistas para pesquisar o solo, clima, vegetação e outras características que compunham a fauna e flora da Antártida, a Terra Matre. Era composta por um refeitório central, laboratório de análises, duas estufas e cinco quartos com beliches e dois banheiros. A água era aquecida por um aquecedor central o mesmo que mantinha a temperatura interna dos ambientes constantemente em 22 graus e a energia elétrica vinha de geradores. Para deslocamento os cientistas dispunham de cinco motos de neve e um caminhão adaptado. Os mantimentos eram trazidos de avião uma vez ao mês e abasteciam as várias estações de pesquisas da região. Assim era a vida nesse local de clima extremo e inviável à vida humana caso não houvesse toda essa estrutura de aquecimento e isolamento térmico. Michel e Sacha eram biólogos responsáveis pela coleta de musgos. Michel era brasileiro, Sacha, russo, e desde que chegaram há um mês, suas pesquisas haviam catalogado três novos tipos de musgos que nunca haviam sido identificados. O objetivo era provar que esses musgos seriam responsáveis pela manutenção da camada de ozônio que protegeriam a Terra contra os efeitos nocivos do Sol.
Devido ao frio intenso as motos demoraram mais tempo que o normal para que o motor ligasse e a dupla de biólogos abriu o caminho na neve fresca que acabara de cair durante a madrugada. Ao chegar ao local da coleta que ficava a quarenta minutos da estação perceberam que a paisagem estava completamente diferente. No dia anterior o local exato dos musgos havia sido marcado com estacas laranjas, bem chamativas no ambiente branco. Ao se aproximarem das estacas perceberam que a vegetação rasteira estava mais alta uns dez centímetros do solo indo contra a expectativa de encontrarem os musgos cobertos pela neve da noite.
— Sacha, o que aconteceu aqui? Os musgos estão mais altos e parece que possuem caules?
— É o que parece. Mas, é impossível ! Musgos não possuem caules ! — disse Sacha sem conter sua excitação.
— O que você acha de colhermos uma amostra do solo e desses estranhos caules que cresceram? —perguntou Michel ainda espantado com a descoberta.
— Perfeito. Vamos fazer isso — disse Sacha enquanto retirava da mochila o equipamento para a coleta.
Depois de uma hora de trabalho, várias amostras estavam devidamente guardadas em recipientes estéreis e a dupla de biólogos retornou à base com suas motos de neve. O laboratório da base era considerado o coração da estação sendo uma referência para outros centros de pesquisas e foi para lá que as amostras coletadas foram levadas imediatamente.
***
— Sacha, venha ver isso! — chamou Michel sem tirar os olhos das lentes do microscópio.
— Deixa eu ver — aproximou-se Sacha quase empurrando o amigo.
— Estou ficando louco? Essa amostra corresponde ao caule de uma Pachira aquatica?
— Sim Michel, realmente parece uma Pachira aquatica, uma árvore típica de países tropicais bem no meio da Antártida. — afirmou Sacha falando lentamente, sem realmente acreditar no que dizia.
Os dois se entreolharam atônitos e ficaram em silêncio por alguns instantes.
— Não vamos concluir nada! Absolutamente nada! Ainda temos várias amostras para analisar. De acordo? — disse Sacha.
— Tem razão, pode ter sido uma ação externa de algum explorador, ainda é cedo para pensar qualquer coisa.  Então, ao trabalho! — falou Michel começando a preparar lâminas para ver cortes do vegetal no microscópio.
Mogno, Castanheira, Jequitibá e mais outras duas espécies de árvores tropicais foram identificadas durante as análises. Os dois perquisadores não sabiam o que pensar ou como agir e depois de muita discussão e consultas a estudos anteriores decidiram voltar ao local da pesquisa. O desejo de ambos era voltar imediatamente, mas havia previsão de uma nevasca o que os obrigava a esperar até o dia seguinte.
Ao chegarem ao local marcado com as estacas laranjas, perceberam que a vegetação estava ainda maior e aqueles supostos pequenos musgos do dia anterior, começavam a ganhar tamanho e forma, não deixando qualquer dúvida sobre qual seriam suas espécies. As raízes estavam cravadas no solo congelado. E musgos de verdade não possuíam raízes.
A cada dia as árvores cresciam mais e mais, assim como novas espécies foram surgindo e a inexplicavelmente floresta tropical foi crescendo. Em três semanas chegaram a ocupar uma área equivalente a meio estádio de futebol e então parou de aumentar sua área de crescimento. Dentro da floresta um ecossistema próprio se formou. A temperatura era de uma média de 25 graus positivos e conforme as folhas das árvores caíam possibilitavam que o solo criasse um isolamento térmico preservando a tempertura. Pequenos insetos começaram a se proliferar; lagartas, mosquitos, em seguida borboletas e pássaros. A neve e o frio não entravam lá e via-se que as árvores limítrofes possuíam um tronco bem duro e muito largo, protegendo as outras árvores que se desenvolviam internamente. Aquela floresta contrariava qualquer teoria ou possibilidade existente. Era a vida existindo por si, em abundância e sem explicações. 
A comunidade científica internacional estava em alvoroço, assim como a mídia do mundo todo. Mas como o local era bastante isolado, os cientistas puderam continuar seus estudos sem interferências. Seletos biólogos e geólogos das mais renomadas universidades foram chamados para colaborar com o caso, mas a frustação e o espanto eram os sentimentos que prevaleciam devido a falta de entendimento para o fato; havia uma floresta tropical no meio da Antártida, aceitassem ou não.
Michel e Sacha, os primeiros a testemunharem a transformação da paisagem visitavam o local todos os dias. Assim que passavam as árvores protetoras, que batizaram de sentinelas  despiam-se das inúmeras camadas de roupas de aquecimento e ficavam apenas com roupas de baixo. Ambos sentiam que a explicação não estava na ciência exata e no racionalismo e sim em algo mais que ainda não sabiam expressar. Nessas visitas diárias, ficavam horas caminhando entre as árvores, ouvindo os pássaros e sentindo o pulsar da mata. Sabiam que a seiva bruta que sustentava esse sistema provinha do mesmo solo congelado que antes não gerava nada. 
— Acredito que o segredo esteja nas raízes — disse Sacha enquanto contemplava o céu sentado sobre as folhas embaixo de uma árvore. — Sabemos que a seiva bruta se transforma em seiva elaborada por um processo químico, o que depende da fotossíntese.
— Sacha, já analisamos isso, lembra-se? Constatamos que a fotossíntese das folhas é exatamente igual em qualquer outra floresta. — contestou Michel, desanimado.
— Não me refiro à fotossíntese. Estou falando da parte mais profunda das raízes, deve haver alguma coisa lá. Alguma transformação que passou despercebida em nossos estudos. — explicou Sacha.
— Tudo bem. Mesmo que constatemos que há algo nas raízes que não percebemos antes, ainda não sabemos como essas espécies chegaram aqui e cresceram tão rápido. E os pássaros? Me responde! De onde vieram os pássaros?! — Michel estava quase gritando.
— Calma, assim vamos acabar enlouquecendo. Temos que manter a calma e não perder a razão.
— É aí que nos enganamos, Sacha. Acredito que a razão não trará a resposta que buscamos.
— Mas, somos cientistas! Não podemos simplesmente aceitar o fato sem trazer à luz da ciência. — argumentou Sacha.
— Concordo! Não estou questionando isso, mas ainda não somos evoluídos o bastante para essa explicação. Vamos continuar nossos estudos convencionais, mas sugiro que criemos uma nova abordagem e para isso temos que estudar ciências herméticas, religiões, cultos do passado, arqueologia, antigas civilizações. Toda informação será útil. Mas, antes de tudo isso, sei que temos uma obrigação.
— Que obrigação?
— Temos que compreender esta floresta e protegê-la para gerações futuras. Sugiro nos mudarmos para cá.
Sacha e Michel conseguiram permissão para montar um acampamento dentro da área verde e lá desenvolveram uma rotina de estudos, novas coletas, catálogo de ervas medicinais, contemplação da mata e yoga, mudando todos os seus paradigmas científicos. Estavam decididos a vivenciarem aquela natureza misteriosa e a dedicar suas vidas na tentativa de encontrar uma resposta a esse fenômeno sem precedentes na história da ciência. Sacha ainda acreditava na ideia de focar as pesquisas nas parte mais profunda da raízes e de tanto insistir acabou convencendo Michel :

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