Ela sorriu timidamente e respondeu não se importar. Voei ao passado... Aqueles cabelos castanhos chocolate, os lábios um tanto carnudos e rosados, a pele branca e frágil, os olhos graúdos e amarronzados, da mesma tonalidade que os cabelos. Está certo, não eram verdes, mas ainda assim ela parecia a versão irmã mais nova de Lílian, até a voz era parecida. Achei que fosse brincadeira de Ricardo, que ele tivesse contratado uma atriz para me pregar uma peça, e fiquei nervoso.
Esfreguei as mãos no avental e respirei fundo, eu realmente precisava disfarçar, depois estiquei o braço para pegar uma vasilha. Só que ela, totalmente espontânea, prendia os cabelos devagar, de modo que pude ver os fiozinhos castanhos que desciam pelo seu pescoço. Meu coração disparou. Tirando o trote, que muito me aborreceria, aquela mulher com carinha de menina delicada possuía todos os atributos femininos que me atraíam. Esguia e linda, do tipo falsa magra. Olhei outra vez o seu corpo, a calça de linho e a camisa social deveriam esconder curvas perfeitamente desejáveis.
Tirei depressa os olhos de cima dela e senti seus passos lentos avançarem em minha direção. Fingi não me importar, arregaçando as mangas do dólmã e pegando um descascador de legumes. Ela encostou-se à bancada, e eu, calado, prossegui. Comecei descascando cenouras, sério e seguro — como se a presença dela não me fosse perturbadora —, mas trêmulo por dentro. Respirei fundo outra vez e anulei minhas emoções com afinco, para poder continuar meu trabalho sem desviar a atenção. Não dizíamos nada, o descascador deslizava sobre a superfície dos legumes, fazendo um leve som rasgado e rouco, e nem mesmo isso era capaz de roubar dos meus ouvidos de músico o tom de curiosidade na respiração daquela bela mulher.
Coloquei as cascas num bol de descarte e passei a cortar as cenouras em julienne. Não era preciso aplicar tanta velocidade no corte, mas eu queria mesmo impressioná-la. Está bem, confesso, foi paixão à primeira vista. E daí, quem nunca se apaixonou desse jeito ao menos uma vez na vida? Se bem que aquela foi a minha primeira, primeira e última vez.
— Você é muito habilidoso com a faca — ela disse e me fez estremecer, depois se voltou para mim e começou a falar alguma coisa, porém não consegui entender nada. Meus olhos estavam perdidos em seus lábios, que se abriam e fechavam lentamente, mostrando a ponta da língua tocar a parte de trás dos dentes superiores e se mover de todo jeito dentro de sua boca linda e avantajada. — ... sempre gostei dessa fase — concluiu.
Eu sorri, e o que mais poderia fazer? Não tinha ideia do que ela havia dito.
— E você? — perguntou.
— Eu o quê?
Ela riu, dessa vez, como se estivesse me achando um idiota.
— Acaso você ouviu o que eu disse? — e me fitou fazendo com que eu tornasse a me perder, agora, em seus olhos graúdos e brilhantes. — Não gosta de preparar o mise en place1?
— Ah, claro — respondi ainda meio desnorteado. — Geralmente alguém faz isso para mim, mas todo cozinheiro que se preza deve se acostumar a fazer tudo na cozinha, de separar o mise en place a lavar os pratos, varrer o chão e retirar o lixo.
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Entre a Fé, a Razão e o Coração (CHICK-LIT)
ChickLitA violinista Christina Fragiolli detesta ficar parada em estacionamentos, entrar em elevadores e gente mentirosa, mas é justamente parada num estacionamento e dentro de um elevador que ela conhecerá as pessoas que mudarão a sua vida, e que também a...