Prólogo

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Era uma vez

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Era uma vez...


Essas palavras repugnavam Júlia. Cada sílaba carregava o fedor podre da ingenuidade, uma lembrança cruel da mentira que é acreditar em príncipes encantados, cavaleiros em armaduras brilhantes ou finais felizes. Fadas madrinhas, castelos e bailes... um teatro grotesco que a vida usava para arrancar risadas amargas das bocas de tolos. Naquele momento, ela estava sentada diante de um terapeuta, engolindo a mesma ladainha enfadonha sobre como "a vida é bela", sobre a "gratidão" que deveria sentir pelas suas "escolhas". Mas ele não compreendia. Jamais compreenderia. A vida dela não era uma fábula. Era uma tragédia devorada pelo caos e pelo vazio.

Júlia cresceu cercada pelo que parecia ser amor — uma ilusão bem arquitetada. Seus pais, seu mundo, haviam sido arrancados de forma brutal quando ela tinha apenas nove anos. Aquele maldito acidente de carro não só os levou embora, mas também destruiu qualquer noção de segurança que ela poderia ter. A partir dali, o inferno engoliu sua existência. Mandada para viver com os tios, ela logo descobriu o verdadeiro significado de ser indesejada. Cada insulto, cada humilhação a corroía. Eles a tratavam como um fardo, uma criatura descartável. E, em meio àquele cenário grotesco, havia apenas uma alma que parecia enxergá-la: Caio, seu primo.

Caio era a única âncora que a impedia de afundar de vez na escuridão. Seus abraços eram a única coisa que aquecia seu corpo congelado por dentro. Aos 14 anos, seus lábios se encontraram pela primeira vez, e naquele toque proibido, Júlia encontrou algo que parecia real — algo que ela poderia chamar de amor. Ele era tudo o que ela tinha, e para o mundo eram apenas primos, mas para ela, ele era a salvação. Aos 16, já namoravam em segredo, escondidos de olhos curiosos. A vergonha e o medo de serem descobertos pairavam sobre eles como uma sombra, mas Júlia não se importava. Ele era seu refúgio, sua única razão para continuar.

Mas então ele a destruiu. Aos 18, Caio partiu, deixando-a para trás com promessas vazias, alegando que voltaria para buscá-la. Não importava o quanto ela implorasse, ele a abandonou, sumindo em uma cidade distante para seguir sua vida sem ela. E, assim, o último resquício de luz se apagou da vida de Júlia. Seus tios, implacáveis como sempre, a torturaram com palavras afiadas como lâminas, dizendo que ela era adotada, que seus pais jamais a amaram de verdade. Diziam que Caio, assim como todos, havia fugido porque jamais a aceitaria. Mostravam fotos dele com garotas mais bonitas, rindo e vivendo, enquanto ela era deixada para apodrecer.

A dor corroía seu peito como ácido, cada palavra plantando mais um prego no caixão de sua sanidade. Ela estava sozinha. Com uma mochila miserável nas costas, carregando nada além de lembranças destroçadas, Júlia partiu. Vagou sem rumo, afundando ainda mais nas trevas. Acabou debaixo de uma ponte, onde o frio cortava sua pele como navalhas e a fome a deixava à beira do delírio. Implorar por migalhas era o último resquício de sua dignidade se esvaindo, cada olhar de desprezo a empurrando para mais perto do abismo.

Foi então que uma mulher apareceu. Bem vestida, com olhos calculistas, ela ofereceu a Júlia uma saída. Um emprego como garçonete, um lugar para dormir, comida. Era o que ela precisava para sobreviver, e no desespero, aceitou. Viver naquela existência fria e mecânica era melhor do que se afundar nas ruas.

Quando finalmente completou 18 anos, esperou, ainda agarrada à ilusão de que Caio apareceria para cumprir sua promessa. Mas ele nunca veio. Foi ali, no silêncio sufocante daquela ausência, que Júlia entendeu o que sempre soube: ela era descartável, até para ele. Com o coração destroçado e a alma ferida, ela decidiu fugir mais uma vez. Juntou o pouco que conseguiu com gorjetas e fugiu daquele lugar — não para encontrar a paz, mas para escapar das lembranças que a arrastavam para o inferno.

Ela partiu, mas Caio nunca a deixou. O fantasma de seu amor ainda a assombrava, as cicatrizes que ele deixou queimavam como feridas abertas, lembrando-a a cada passo de que ela nunca seria verdadeiramente livre.

Caio nunca quis ser o vilão da história. Quando deixou Júlia, sua alma estava tão destroçada quanto a dela, mas ele sabia que precisava partir. Precisava escapar. A vida que viviam, aquele romance secreto e proibido, pesava sobre ele como uma maldição. Aos 18, ele já não suportava mais a casa opressiva, os pais controladores, as regras sufocantes. Precisava de ar, de espaço, de uma chance de construir algo além daquele pesadelo familiar que os envolvia.

Júlia, sua prima, sempre fora seu ponto de conforto. Desde criança, ela o entendia de uma maneira que ninguém mais conseguia. Em seus olhos, ele via a dor espelhada que carregava, e talvez por isso tenham se aproximado tanto. Eles viviam cercados por mentiras e abuso, e naquela bolha de sofrimento, o amor que sentiam parecia uma fuga, uma forma de sobreviver. Mas, à medida que cresciam, Caio começou a sentir o peso esmagador da situação. Não era apenas o segredo que os mantinha presos — era a realidade sombria de que, no fundo, aquilo jamais poderia durar.

Ele a amava, é claro que amava. Amava seus olhos que buscavam nele algum tipo de redenção, amava seus abraços que pareciam prometer um futuro melhor. Mas ele também sabia que não havia futuro naquele lugar. Eles estavam condenados a apodrecer, e Caio queria mais da vida. Ele queria escapar da prisão que o cercava, e Júlia, por mais que fosse tudo para ele, era também um lembrete constante do que ele precisava deixar para trás.

Quando completou 18 anos e a oferta da faculdade apareceu, a oportunidade parecia uma bênção e uma maldição. Ele sabia que não podia levá-la com ele, não naquela época, não quando ainda eram tão jovens. Prometeu que voltaria para buscá-la, mas, no fundo, sabia que era uma promessa vazia. Como poderia voltar quando tudo que Júlia representava era a prisão que ele tanto temia? O amor que sentiam não poderia sobreviver ao mundo real. E mais do que isso, Caio não podia arriscar sua liberdade, sua chance de recomeçar, por um sentimento que o arrastaria de volta para o pesadelo que ele mal havia conseguido escapar.

Ele partiu, mas o rosto dela continuou a assombrá-lo. Os olhos dela, cheios de expectativa, de confiança cega, o perseguiam em seus sonhos, nas noites frias da cidade universitária. Enquanto ele construía uma nova vida, fazia novos amigos, tentava se ajustar à liberdade, a culpa roía sua alma. Ele sabia que a deixara sozinha, sabia que a quebrara de uma forma que jamais poderia consertar. Mas a distância entre eles crescia a cada dia, e a verdade era cruel: ele não voltaria. Não porque não a amava, mas porque ela era um fragmento de um passado que ele nunca queria reviver.

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