Jaulas - Parte 1

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O grande problema de viver em um container é que qualquer batida do lado de fora se transforma no urro de almas perdidas no abismo do lado de dentro. E esse foi o despertador para Leiko.

Acompanhada pelo ranger irritante da porta metálica e pelo brilho solar cinzento de mais um dia, estava uma silhueta alta e robusta do lado de fora de sua casa.

- Antes de tudo, eu trouxe café e a campainha parece não estar funcionando. - Foi isso ou algo do gênero o dito por tal figura. Não que importasse muito no momento. Um gesto simples com a mão livre convidou o sujeito para dentro enquanto Leiko limpava os olhos e se acostumava com a claridade.

- Ainda não me sinto muito a vontade entrando aqui.

- Então poderia ter ficado do lado de fora. Não convidarei mais. - Sua voz era rouca e baixa, quase uma reclamação murmurada na fila de um serviço público. - É cedo demais para visitas e tarde demais para eu me importar e se você trouxe café eu espero que tenha algum tipo de merda grande envolvida, você não é gentil.

Lá dentro a única luz era a dos monitores de um computador ao fundo, colado em uma pequena geladeira que nunca teria sua porta completamente aberta enquanto a cama ficasse tão próxima da mesma. Os passos deviam ser tomados com cuidado para não se acidentar com as garrafas vazias no chão ou roupas.

- Sim, tem alguma merda. Mas antes você poderia me dizer como você está, não?

Uma outra luz se fez presente quando Leiko acendeu seu isqueiro para dar as boas vindas ao primeiro cigarro do dia. Seu próximo movimento foi tomar a garrafa térmica das mãos de seu convidado.

- Acordada.

- Ok. Eu consigo trabalhar com isso. Escuta, eu recebi um telefonema de um bordel do centro velho. Parece que algumas garotas sumiram nos últimos dias. - O rapaz tentava identificar algum tipo de reação na face de sua anfitriã mas a única coisa que conseguiu distinguir foi que o cigarro era de péssima qualidade. - Deixando pedaços de seus corpos pra trás.

- Alguém não fez a lição de casa, o normal é fazerem o inverso. E onde isso começa a me interessar? E onde isso começa a valer o café?

- Onde os pedaços estão vivos.

A fumaça não pode esconder o olhar confuso recebido em resposta. "Finalmente uma reação" foi seu pensamento. Continuou: - E são de garotas sem implantes.

- Tudo bem, Charles. Saia, eu vou me vestir.

Lá fora o Sol brilhava mais que o normal. Dia odioso para se sair da sua caverna sem os óculos escuros. Por sorte existia poluição o suficiente para segurar os raios violentos do astro. Raios esses que refletiam nos braços metálicos de Charles que esperava pacientemente do lado de fora do container.

Sua "casa" ficava no topo de um prédio residencial. Isso a deixava livre de vizinhos e condomínio, mas a forçava a subir e descer dez andares de escadas todo dia em que decidia encarar o mundo.

- Eu ainda não entendo porquê você continua morando aqui. Você odeia escadas.

- Sim. Mas elas se tornaram minhas melhores amigas com o tempo.

- Como?

- Elas me dão o melhor motivo para não sair da minha casa.

Já na rua, carros terrestres passavam zunindo, disputando terreno com moradores de rua, luzes e transuentes. Os carros aéreos tentavam desviar dos antiquados fios de luz e dos letreiros ilegais que anundam o bairro.

Charles olhou pros dois lados da rua e chamou o primeiro táxi que conseguiu. Seu motorista eletrônico os recebeu ao entrarem no veículo.

- OLÁ *click* SENHOR. OLÁ *click* SENHORA. POR FAVOR, QUAL O DESTINO?

- Vamos para a Rua 10 com a 15 no centro velho, por favor.

- APERT*click* CINTOS. BOA VIAGEM *click*.

Por mais que Leiko fosse pequena, seu olhar era algo incômodo e quase palpável. O que fez Charles virar pra ela ao sentir seus olhos o fitando.

- O que foi?

- É um robô, Charles. Você não precisa ser educado com um robô.

- Minha terapeuta disse que seria interessante eu começar a ser mais amigável com as pessoas, Leiko. Eu estou tentando me esforçar. O estresse atrapalha na aceitação biológica dos implantes. - Foi a resposta dada enquanto ele se tocava em seus braços mecânicos. Charles era um rapaz alto, de pele escura e barba rala. Há pouco tempo atrás sofreu um acidente em um bico que fazia como eletricista e acabou perdendo ambos os braços. Uma memória que Leiko gostaria de esquecer. - Ela também recomendou ter animais de estimação mas não acredito que eu seria capaz de cuidar de um.

- Não, não seria.

Não houve mais nenhuma resposta da parte de Leiko durante o resto da viagem que não fossem grunhidos desinteressados para qualquer comentário ou tentativa de criar assunto por seu colega. Seus olhos estavam ocupados observando a cidade em todo seu cinza escuro metalizado: pixadores deixando suas infinitas marcas no concreto sujo, viciados paranóicos caçando sua próxima dose, trabalhadores com passos furiosos atrasados para seus compromissos, robôs-letreiros anunciando a mais nova promoção alimentícia e anjos desfilando em suas lindas viaturas garantido que tudo isso continue nessa incrível e anárquica paz.

- SENHOR. SENHORA. CHEGA*click* AO NOSSO DESTINO. O VALOR É DE *click* *click* DUZENTOS E QUARENTA ÁGUIAS.

Charles tirou seu celular do bolso e o passou na tela em frente ao seu assento. Um som foi emitido ao confirmar o pagamento.

- OBRIGADO POR VIAJA*click* VIAJA*click* VIAJA*click* - O motorista não conseguiu terminar a frase antes de seus passageiros humanos descerem do veículo.

O local era surpreendentemente bem conservado: paredes sem grafites, segurança humano na porta, um tapete vermelho cobrindo as escadas que levavam à entrada e uma faixada digna de teatros antigos. Provavelmente foi um teatro antigo em algum século e agora se tornou algo realmente lucrativo. Até mesmo o letreiro ainda funcionava. Alto e em um antiquado mas charmoso neon podia ser lido "Casa de la Bella".

- Quantas pessoas me acordam às 11 da manhã pra me levar em um puteiro? Eu te digo quantas, Charles, vamos, pergunte.

- Não faça eu me arrepender de ter te trazido.

- Pensava que era esse o meu trabalho. - disse ela com um sarcasmo tão pesado quanto o nível de dióxido de carbono no ar.


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