Parte I

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  "É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os reinos,
e fez do mundo um deserto?[...]"    Isaías 14. 16-17

Nas sombras eu estou, pois esta é minha vida agora. Sombria. Uma vida propiciada pela morte e baseada em matar. Morri como um humano, e ressurgi como o ser mais poderoso deste mundo. Nem mesmo os outros que criei a minha imagem e semelhança são tão poderosos como eu. Sou o primogênito, o verdadeiro filho de Satã. Hoje tenho um exército gigantesco de criaturas amaldiçoadas como eu, que estão ao meu serviço, espalhando o caos até os confins da Terra. Mas nem sempre fui assim; já fui fraco, já tive uma alma, já tive sentimentos banais como amor. A minha maldição teve um início, e é o que contarei.

Era o início século XIII, na era hoje conhecida por Idade Média. Eu era um mero nobre romano, dono de terras. Vivia com minha esposa, meu filho de seis anos, e os meus servos. Tinha um grande amor pela minha família, e mais ainda pela Igreja Católica. Era fiel ao papa. Sempre pagava minhas ofertas à igreja, até mais do que era a obrigação. Por mais de uma vez cheguei a me encontrar com o próprio papa Inocêncio III, o que me deixava orgulhoso, sentia me honrado pelo próprio Deus. Como era tolo.

Quando o papa convocou aquela expedição para retomada de Jerusalém, não pensei duas vezes. Era claro que eu iria. "Deus me recompensará", era o que eu pensava e dizia para a minha mulher e meu filho. A parte mais difícil foi me despedir deles, pois os amava. Mas o amor por Deus era maior. E eu iria retomar a terra dele das mãos de pecadores para dar aqueles que faziam a Sua vontade. Que idiota fui.

Logo juntei-me ao exército da Igreja e ao vestir aquele uniforme sentia-me abençoado. Aquela cruz vermelha no peito representava algo pra mim. Finalmente estava fazendo algo para o Senhor e para o papa. Ali eu não percebia como era um fraco. Com Deus me sentia forte. Com Deus eu era tolo. Ao finalmente partir na missão a felicidade inundava meu ser. Porém tivemos um pequeno empecilho ao chegar em Veneza. Para sairmos de Veneza em direção ao nosso destino precisamos atender às exigências do conde veneziano Enrico Dandolo. Ele ofereceu embarcações, mas pra isso devíamos ajudar os comerciantes de Veneza na conquista das cidades de Zara e Constantinopla.

Foi assim que conheci o homem que transformou minha vida. Ele era o capitão da embarcação. Um homem misterioso, que parecia guardar inúmeros segredos por trás do seu corpo alto e robusto. Comecei a conversar com ele durante os dias na nau. As conversas começaram com banalidades, palavras ao vento. Mas depois de certo tempo ficaram não só mais sérias, mas cheias de mistério. Desde o princípio a simples presença dele me trazia sensações que eu costumava ignorar. Mas depois de alguns dias as conversas tomaram outro rumo, e as sensações se intensificaram. Algo que me dava excitação, ao mesmo tempo que fazia arrepiar cada pelo no meu corpo.

"Você realmente acredita que o que estamos fazendo é o certo?", ele me perguntou certo dia, quando a embarcação já estava se aproximando de Zara.

"Ao que você se refere?", indaguei

"A isto. Todas essas pessoas mortas, e as que ainda hão de morrer.Tudo em nome de Deus"

"Exatamente. É em nome de Deus. É a vontade dele". Como ele podia questionar isso?

"E se for a vontade dele? Ele sempre tem razão?"

"Claro que sim! Como você pode questioná-lo?" Agora ele tinha ido longe demais. Não só com as palavras, mas com o seu olhar. Um olhar que penetrava minha alma. Resolvi manter distância daquele sujeito. O que ele estava fazendo? Querendo por dúvidas sobre o sentido da minha vida? O papa, a igreja, Deus... Se isso não merecesse toda a nossa confiança e devoção, o que merecia?

Dias passaram. A cada dia eu me esforçava para afastar-me do misterioso marinheiro, embora não conseguisse evitar aqueles olhares significativos. Quem era ele? Eu não sabia responder. Ele nunca havia me revelado seu nome. "Me chame de Capitão", ele havia me dito. Um capitão que surgiu na minha vida de repente, e tudo o que eu desejava era que sumisse na mesma velocidade. E meu desejo pareceu próximo de se realizar quando desembarcamos em Zara. Jamais veria aquele homem, prometi a mim mesmo.

Não houve espera. Chegamos naquela cidade e atacamos. Junto aos comerciantes venezianos eu saqueei, matei pessoas. Inocentes. A cada vítima que eu fazia rogava uma prece. Aquilo salvaria suas almas, acreditava. Mesmo assim me sentia mal. Depois de um tempo os questionamentos do marinheiro rondavam a minha mente. E se aquilo fosse errado? No começo, tentava me convencer. "É a vontade divina", dizia pra mim mesmo. Mas depois de um tempo tudo o que eu tinha eram dúvidas, questionamentos que surgiram em mim de forma inexplicável. Até que veio um acontecimento que transformou estas dúvidas em algo maior.


Esta foi a primeira parte do conto "Gênesis". E aí, o que acharam? Deixe seu voto e comentário! Obrigado por ler!

Gênesis    {CONTO}Where stories live. Discover now