Parte II

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Enfim, a cidade foi conquistada. Mas pra mim não houve o que comemorar. Isto porque o papa resolveu me excomungar. Isso mesmo, ele se revoltou com o rumo que a cruzada levou e resolveu banir os venezianos e os que os ajudaram da Igreja. E isto me incluía. Se eu tinha ido contra a vontade do papa e de Deus, o que aquilo significou? Nada. Meu coração inflou-se de revolta. Eu não era mais um cristão, aceitei isso. Desfiz-me daquela armadura idiota. A cruz me traz repulsa até os dias de hoje. E nesse momento odiava o papa, odiava a Igreja. Odiava Deus. Um ódio que eu mesmo não era capaz de explicar. Claro, tinha um motivo, mas este motivo não estava à altura do meu ódio. Mas de uma coisa eu sabia, estava relacionado àquele marinheiro.

E neste momento o meu desejo era me encontrar com aquele que há algum tempo buscava evitar. Ele teria as respostas, eu sabia disso. Até que certa noite encaminhei-me ao porto a fim de encontrá-lo, ou obter alguma informação sobre o seu paradeiro. Não precisei procurá-lo, pois ao me aproximar do porto encontrei aquela figura robusta, de braços cruzados, seu olhar mostrava que já estava a minha espera.

"Conte-me tudo". Ele falou. Ele demonstrava que já sabia o que aconteceu, mas queria ouvir da minha própria boca. E eu fiz sua vontade. Contei todo o ocorrido, toda a minha raiva, todo o meu rancor, e ainda a falta de compreensão para tamanha raiva. De repente confiava nele. Seu silêncio enquanto eu relatava minha história demonstrava compreensão. De alguma maneira ele compreendia meu ódio, e aumentava minhas suspeitas de que ele tinha algo a ver com este ódio.

"Sei exatamente o que você sente", disse por fim o marinheiro, "já passei por situação semelhante. Já servi a Deus, e no fim ele me abandonou. É isto o que ele faz". O que antes eu consideraria uma das maiores blasfêmias, agora fazia total sentido pra mim. Ele estava certo.

"Conte-me a sua história", pedi ao não mais tão estranho sujeito. "Você sabe a minha, e eu nem ao menos sei seu nome"

"Você conhece a minha história Giovanni, e com certeza deve me conhecer por alguns nomes."

"Claro que não. Quem é você?", indaguei.

"Sou o anjo que caiu do céu. Lúcifer. Satanás. O diabo.", disse o marinheiro com um sorriso que me pareceu de deboche no rosto. Na mesma hora um raio cortou o céu da praia, seguido por um estrondoso trovão.

Ele estava falando sério? Estava, de alguma forma eu tinha consciência que ele falava a verdade. Estremeci, mas não foi medo o que senti. Era respeito. Naquele momento eu estava frente ao frente com o capeta, e não o temia. O respeitava, ele era o único que me compreendia. Ele me ofereceu a mão. Mas depois descobri que quando o Diabo lhe estende a mão ele quer algo em troca. A sua alma. E você deve estar disposto a entregar-lhe.

"Junte-se a mim. Tenho grandes planos para você. Comigo você será poderoso. Ninguém na face da Terra terá mais poderes que você.", foi a proposta feita pelo maldito ser. E eu a aceitei. Eu queria isso, queria poder.

A partir daquele dia eu era servo do demônio. Juntei-me a ele e passei a fazer o que ele ordenava. Passei a matar pessoas, muitas inocentes. No começo me sentia um pouco desconfortável, mas nada que se comparasse ao remorso que sentia antes de conhecer Satanás, quando matava pessoas nas cruzadas. Não, era diferente. Eu gostava daquilo de certa forma. Matava para o diabo e aos poucos me tornava um demônio.

Depois de certo tempo, matar era o que eu amava. Pouco me lembrava da minha família, que há anos não via. Foi nesta fase, em que o remorso não existia mais para mim, que fui convocado a uma floresta escura por Lúcifer.

"Como eu havia prometido, tenho algo grandioso pra você", começou a dizer o marinheiro das trevas, "e hoje chegou o dia de darmos um passo adiante. Está preparado?"

"Com certeza", falei com a voz carregada de ansiedade.

"Terá de provar. Feche os seus olhos, vou te levar a um lugar especial". Obedeci. "Pode abri-los", tornou ele alguns segundos depois.

Ao abrir meus olhos me encontrava em uma planície totalmente diferente do local onde me encontrava momentos antes. A neve caia no local, em pequena quantidade, mas o suficiente para atrapalhar um pouco a minha visão, tardando que eu descobrisse onde estava. Mas logo descobri. Conhecia aquele rio. O rio Tibre com o imponente Castelo de Santo Ângelo às suas margens. Estava em Roma, depois de alguns anos, finalmente eu estava em casa!

"Vejo que conhece bem este lugar...", tornou a voz diabólica.

"Com certeza", respondi, tremendo um pouco por conta do frio, "Mas como chegamos aqui tão rápido?"

"Ainda pergunta? Talvez eu tenha que lhe lembrar quem eu sou". Ele tinha razão, a pergunta era estúpida, ele tinha poderes imensuráveis, pois era o próprio Satanás.

"Enfim, é chegada à hora de você provar que está pronto. Me acompanhe". Segui-o, caminhando para dentro do arvoredo, se afastando da margem do rio. Já havíamos adentrado boa parte da floresta, quando ele parou e se virou para mim. Estávamos diante de uma imponente azinheira, de uns vinte metros de altura. Um olhar mais atento para a árvore me mostrou algo inusitado. Pendurada de ponta cabeça por uma corda vinda de um dos altos galhos da árvore, de modo que sua cabeça se encontrava a aproximadamente um metro e meio do chão se encontrava uma mulher. Minha mulher. A conheci, apesar da baixa claridade do local.

No momento, os seus olhos estavam fechados, mas parecia estar consciente. Suponho que tinha se cansado de lutar contra as amarras, e teria resolvido aguardar pela morte, ou por um milagre.

"Sabe o que fazer", disse Satanás, me entregando um objeto que reconheci ser uma faca, pelo brilho da lâmina afiada, mesmo à fraca luz do local. "Vejo que a escuridão lhe incomoda, mas depois deste processo ela será sua amiga. Por enquanto, vou lhe ajudar". E dizendo isso, uma refulgente fogueira surgiu em meio a floresta coberta de neve.


Este foi a segunda parte do conto Gênesis. E aí, o que achou? Deixe seu voto e seu comentário. Adicione a sua lista de leituras...

Gênesis    {CONTO}Where stories live. Discover now