Eu sabia mesmo o que fazer? Cheguei a me perguntar. Sim, eu sabia. Aproximei-me do corpo pendurado de minha esposa com a faca em punho, mais reluzente que antes, agora com o advento da fogueira. Neste momento ela abriu os olhos assustada. Ao me ver uma expressão de alívio surgiu em sua face, e com as poucas forças que restavam em sua rouca voz, ela sussurrou:
"Giovanni! Sabia que você viria me salvar"
Ergui a faca, entretanto não cortei as amarras, mas sim os pulsos que estavam presos à elas.
"Sim, eu vim. Mas não sou sua salvação. Sou sua perdição." Exclamei em meios aos gritos de dor da minha outrora amada esposa. Os gritos me alimentavam. Saciavam a minha sede. O sangue descia e só então percebi que se acumulava em um recipiente prateado, colocado bem embaixo do corpo amarrado. Continuei o meu trabalho, desta vez levando a faca ao pescoço da vítima que ainda tentava gritar, mas cada vez a força da voz diminuía, até que os gritos tornaram-se pequenos gemidos, que diminuíam a medida que o sangue descia em uma vermelha cascata. Por fim estes gemidos também cessaram, assim como o escorrimento do líquido vermelho. O que antes era minha mulher, agora era um mero cadáver tão pálido quanto a neve acumulada em suas vestes. Aquela visão não me trouxe remorsos, ao invés disso me deu satisfação. A sensação de trabalho cumprido.
Enquanto me satisfazia com o meu feito, palmas cortaram o silêncio. Já tinha me esquecido da presença de Lúcifer, tal foi a intensidade daquele momento.
"Muito bem, muito bem. Está cumprindo bem sua tarefa. Agora vem o mais importante. Está vendo todo este sangue?", perguntou, indicando com um olhar o recipiente prateado. "Deve bebê-lo", disse-me, entregando uma taça também prateada.
"Desculpe-me, você está insinuando que eu devo beber o sangue derramado da minha mulher?", indaguei ao receber a taça das mãos satânicas.
"Não questione. Apenas obedeça.", desta vez havia um tom de fúria em sua voz.
Não o questionei mais. Mesmo receoso levei a taça até a bacia de prata, onde a emergi até que ela encheu. Levei até a boca. O gosto era horrível. Mas bebi. Ao terminar a primeira taça veio a voz do maldito marinheiro outra vez:
"Beba tudo.". Tornei a encher taça, esvaziar. Encher e esvaziar. Encher e esvaziar, até que a bacia maior estava vazia.
"Muito bem. Agora me traga a faca". Entreguei a faca, que incrivelmente não continha uma marca de sangue. Toda gota do sangue derramado parecia estar dentro de mim. Ao receber a faca das minhas mãos, o diabo fez um corte no seu próprio pulso direito. Ele soltou a faca ao chão e com a mão esquerda puxou minha cabeça de encontro ao pulso cortado. "Beba". Apenas obedeci. Seu sangue tinha um sabor diferente. Chegava a ser saboroso. Depois de eu sugar uma razoável quantidade do sangue que escorria, ele afastou meu rosto do seu braço. Um instante depois o corte no seu braço havia sumido, sem deixar cicatriz alguma.
"Finalmente está pronto para a transformação. Agora só precisa morrer para completar sua metamorfose". Sem maiores explicações ele se adiantou em minha direção, segurou meu pescoço e deve tê-lo torcido, pois depois disso tudo se apagou. Escuridão total.
Ao que me pareceu alguns minutos retomei a consciência. Levantei-me, e me encontrava ainda diante da mesma azinheira. Logo percebi que embora ainda estivesse escuro, eu enxergava claramente, até melhor do que costumava ver durante o dia. A fogueira ainda se encontrava lá, mas agora todo o seu brilho era insignificante, como uma lâmpada acesa em um lugar iluminado pelo sol.
Meu corpo também estava diferente. Não sentia nenhuma dor ou cansaço, era como se tivesse renascido. Me sentia um novo homem. Mas no fundo eu sabia que não era mais um homem. Sim, havia renascido, renascido para as trevas. Apesar de tudo sentia fome. Ou seria sede? Não conseguia definir ao certo. Precisava me alimentar.
"Está feito", veio mais uma vez a voz do marinheiro do inferno, "Agora deve querer se alimentar. Não se preocupe, tenho algo pra você."
"No que me transformou?", perguntei.
"Na minha obra-prima", respondeu, "um ser maldito com poderes imensuráveis. Você trará o caos a este mundo. Contarão histórias sobre você e os seus descendentes. As histórias virarão lendas, e muitas nem acreditarão na sua existência. Permanecerão incrédulos até o momento que você aparecer para eles. Aí eles implorarão pela ajuda de Deus. Talvez ele ajude, talvez não. Você deve multiplicar sua maldita linhagem, criar semelhantes. Eles não serão tão poderosos como você, mas ainda assim causarão terror. Você é imortal, e enquanto viver sua linhagem sobreviverá."
"Como vou criá-los?"
"Quando for o momento, você saberá. Agora, alimente-se.", e com um olhar ele indicou um local no meio das árvores. Lá, parado, com terror e lágrimas nos olhos se encontrava um garotinho de oito anos. Meu filho. Ao vê-lo parado com medo meu apetite se intensificou. Percebi que meus dentes viraram presas e corri em direção ao menino numa velocidade sobrehumana. Um instinto sobrenatural fez com que eu levasse minhas presas ao pequeno pescoço e perfurasse a sua jugular, ao mesmo tempo em que ele gritava e tentava resistir em vão.
Pouco tempo depois o pequeno corpo se encontrava no chão, inerte. Nenhum remorso veio sobre mim. Ele foi minha primeira vítima. A primeira de muitas. Depois daquele dia jamais me encontrei com o Diabo. Ele não me procurou, muito menos procurei ele. Nós não somos amigos. Nós não temos amigos. Hoje existem milhares da minha maldita raça. Espalhamos o caos sobre a Terra, mas nos mantemos escondidos, ocultos em meio a sociedade humana, que pensa que somos apenas uma lenda. Mas qualquer dia um de nós pode ter um encontro com você. E nesse dia, é melhor você está preparado.
Bem, este foi Gênesis, a história do primeiro vampiro. Gostou? Deixe seu comentário e seu voto...
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Gênesis {CONTO}
VampireVampiros. Criaturas retratadas de diferentes formas nos livros, no cinema, na televisão. Mas afinal, como surgiram os vampiros? Quem foi que deu inicio a essa maldita linhagem que atormenta o mundo até hoje? (Sim, eles existem!) Embarque neste...