Três anos antes

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Thierry abriu a porta do apartamento e gritou pelo nome da esposa, mas Alice não respondeu. Ele respirou fundo antes de subir as escadas, já sabia o que encontraria quando chegasse ao segundo andar, mas saber não diminuía, nunca, a dor de ver a cena.

Abriu com cuidado a porta do penúltimo quarto do corredor e entrou com passos tranquilos e silenciosos. Alice estava em pé, próxima a janela e se abraçava a uma roupinha azul. Ele engoliu em seco, mas o nó em sua garganta não diminuiu.

- Querida - chamou com cuidado. - Allie.

Alice virou-se e o encarou. Os olhos estavam vermelhos e seu rosto estava inchado, ela não se preocupou em secar as lágrimas que escorriam deixando rastros por sua bochecha, não se preocupou em saudá-lo ou em sorrir. Apenas o olhou.

- Alice, você precisa... - tentou falar, mas não sabia exatamente o que diria.

Alice precisava de que? Reagir? Sair daquele quarto? Encaixotar aquelas coisas? Seguir em frente? Viver?

Alice não contribuiu para retirá-lo do desconforto, apenas deixou, com extremo cuidado, o macacãozinho de bebê em cima do berço e saiu do quarto a passos apressados. Novamente Thierry sentia-se como um intruso em sua própria casa, não podendo entrar em um aposento sem que Alice o abandonasse de imediato.

Ele caminhou entre os pertences de Vinícius e parou ao lado do berço, o macacãozinho azul já estava amassado de tanto que Alice o apertara, percebeu. Encostou a testa na janela e se perguntou se um dia teria sua esposa de volta, se um dia Alice retornaria daquele local obscuro onde ela parecia engajada a se enterrar.

Deixou a pecinha de roupa em cima do colchão. Nove meses atrás eles tinham internado Vinícius na UTI de um hospital, começou ali uma exaustiva batalha contra a meningite bacteriana e mesmo após todos terem lutado com todas as suas forças, empregado todas as suas possibilidades, ele não sobreviveu.

Thierry viu Alice definhando dia após dia. Não suportava mais olhar para ele, pois dizia que ele era parecido em demasia com Vinícius. Não podia mais escutar a voz dele, pois isso a incomodava. Thierry não podia tocá-la, não podia confortá-la e não podia receber conforto. As vezes se perguntava se ela ainda tinha alguma vontade de viver sem Vini e o assustava perceber que a resposta era um terminante não.

Foi até o dormitório que dividiu com Alice até nove meses atrás e abriu a porta sem antes bater.

- Vai embora - Alice resmungou.

O cabelo desgrenhado era a única parte dela que ele podia enxergar no meio dos cobertores.

- Chega, Alice - disse com um desespero tão visível que Alice retirou os cobertores para olhá-lo. - Basta.

- Thierry, não seja ridículo, por favor... - protestou.

- Você precisa ir ao psicólogo. Tem me ajudado muito e vai fazer mui...

- Não - ela interrompeu enquanto se colocava de pé. - Não vou contar para um estranho sobre meu filho, sobre como foi perdê-lo.

- Então me diz, Allie. Eu que sou o único capaz de entender, eu que também sofro, Alice. Diga-me.

Alice soltou um riso amargo e tão diferente do riso feliz que lhe era habitual que Thierry se encolheu.

- Você entende? Você? - ela apontou - Eu era a mãe dele, Thierry. Ninguém nunca vai entender. Sua dor nunca vai se igualar. Eu o gerei, eu o criei... Eu o perdi.

Após dizer a última palavra ela soltou um soluço que parecia rasgá-la ao sair e ele se aproximou tentando abraçá-la, confortá-la.

- Não! - Alice exclamou enquanto tentava conter as lágrimas. - Sai, por favor.

- Alice, você precisa me deixar te ajudar. Você não sai desse apartamento faz meses, você não toma banho, não troca de roupa, não deixa o quarto que foi de Vinícius. Nem sua família você deixa chegar perto, seu pai está muito magoado com as coisas horríveis que você falou.

- Meu pai é igual você, insiste em tratar minha dor como algo corriqueiro e passageiro. - ela apertou os dedos da mão direita na nuca. - Eu queria ir embora e vocês não deixaram, eu ia... Eu ia conseguir uma vida nova e vocês me impediram.

- Alice, um dia a dor diminui, basta você deixar...

- Não, não vou esquecer meu filho. Não vou deixá-lo... Não posso.

- Não estou dizendo... - ele suspirou frustado. - Ao menos converse comigo, me deixe chegar perto de você. Vamos sair, vamos viajar para o lugar onde você estava querendo ir. Podemos fazer qualquer coisa, Allie. Posso conseguir uma licença no trabalho.

- Eu não vou a lugar nenhum com você.

Thierry a olhou longamente. Podia sair do quarto e continuar vivendo daquela maneira, com Alice fugindo dele, com a dor do luto se agigantando cada vez mais dentro daquela casa e dentro de sua esposa, mas ele estava cansado. Ela tinha todo o direito de sofrer, ela tinha todo o direito de se destruir... Mas ele não ficaria para ver e não ficaria de braços cruzados enquanto isso acontecia.

Caminhou pro closet e retirou uma mala de cima da prateleira mais alta, abriu no chão e começou a jogar objetos aleatórios dentro. Não sentia raiva, apesar de suas atitudes poderem ser interpretadas como um arroubo de fúria. Sentia dor, doía de uma maneira que ele não sabia explicar. Era dizer adeus ao amor de sua vida, meses depois de ter dito adeus a seu próprio filho. Era dizer adeus ao futuro que sonharam juntos, porque ele seria impossível e dizer adeus ao passado que viveram unidos, como uma família, porque ele seria doloroso demais para se lembrar.

- O que você está fazendo com essa mala? - Alice perguntou com voz alarmada. - Você... Você vai sair de casa?

Ele negou com um gesto lento de cabeça.

- Você vai, Alice - explicou - Você disse que não iria a nenhum lugar comigo e não vou mais tentar te convencer a não ir sozinha. Essa casa tem muito do Vinícius, essa casa tem muito de nosso casamento, essa casa está se tornando sua prisão. Você precisa ir embora, agora percebo, precisa fazer uma vida nova pra você. Mesmo que... Mesmo que não possa me incluir.

Suas mãos estavam geladas. Esperou pela reação. Sentia algum desejo, ínfimo, que ela se negasse a sair, que ela batesse o pé, que ela insistisse naquela casa, naquela vida. Naquela relação. Mas Alice apenas ajoelhou-se próxima a mala e a fechou com todo o cuidado do mundo.

Quando ela voltou a se colocar de pé, segurando a alça da mala, ele sentiu algumas lágrimas, teimosas e tolas, brigando por sair a superfície.

- Será que isso vai funcionar? - ela perguntou com uma nota de insegurança na voz.

- Acho que é a única coisa que vai funcionar - admitiu. - Você pode procurar ajuda quando achar que está pronta e até lá você pode viajar, comprar aquela casinha que você dizia que ia comprar quando saísse da faculdade, realizar sonhos que ficaram pelo caminho. Você pode encontrar sua própria maneira de superar e depois... Depois você pode voltar. - ele passou a mão pelo cabelo loiro desgrenhado. - Eu vou esperar.

Allie não respondeu, mas sorriu. Sorriu de um jeito que ele não a via sorrir a muitos meses. E depois apenas saiu, do quarto, da casa. Daquela vida.

Thierry se encostou na porta do closet, queria chorar e gritar e ir atrás dela, pedir que ela voltasse, que ela o olhasse nos olhos, que ela aceitasse sua ajuda, mas não podia. Era da felicidade de Alice que estavam falando, não da dele e era óbvio que a felicidade de Alice era bem longe dali, em algum lugar onde fosse mais fácil respirar sem sofrer por Vinicius, pensar no filho sem que isso a destruisse. Em algum lugar onde pudesse se reconstruir, era lá que Alice deveria estar. Então vá, Alice, pensou enquanto uma lágrima lhe vencia a resistência.

Então Vá, Alice [Conto]Onde histórias criam vida. Descubra agora