Capítulo um

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Novembro 399
Idade média

   VOCÊ JÁ PAROU PARA PENSAR em como a vida pode mudar de um instante para outro? Você pode estar sorrindo feliz em um certo momento, porém minutos depois, até segundos, você pode ficar triste, a vida tem essas contradições anormais para equilibrar os nossos dias, mas você já pensou em dormir e depois acordar sabendo que a sua vila, uma parte da sua vida será punida sem motivos? Eu não pensei, eu vivenciei isso.
 

  Meus pés que mau tocavam o chão espalhavam lama para todos os lados, eu evitava olhar para os rostos curiosos que me encaravam por motivos óbvios, alguns anões atravessaram na minha frente me fazendo tropeçar e ir ao chão porém eu não parei, levantei o vestido até os joelhos e continuei correndo, afinal a floresta se aproximava. Meus batimentos cardíacos e respiração estavam bagunçados, os fios de meus cabelos estavam colando na testa por causa do suor, era desesperador saber dos acontecimentos antes de todos, antes mesmo da realeza.
   Logo que cheguei no meio da floresta eu desabei, coloquei as mãos no rosto para abafar os soluços que escapavam da minha boca. As gotas da chuva salpicavam a terra ao redor fazendo exalar aquele aroma calmante de terra molhada, respirei fundo e tentei me recuperar pois ali até as árvores tinham olhos e ouvidos.
—Me diz o que fazer agora Thomi-observei grandes patas pousarem a minha frente enquanto enormes asas derrubavam as tristes folhas das árvores molhadas, Thomi era um griffon e eu o criara desde filhote, metade de seu corpo se assemelhava a um leão e outra metade com uma águia
—Você tem que voltar minha senhora-sua voz grave ecoou nas profundezas da floresta-sabe a coisa certa a se fazer
—Sim eu sei, entretanto ninguém à de confiar nas minhas palavras-balancei a cabeça em negação-eu já fiz essa tentativa lembra?
—Não importa as tentativas do passado se é o futuro que está em jogo
—Thomi-pedi
—Vamos, a senhora não tem tempo a perder-deu impulso e sumiu em meio às nuvens

Virei o pescoço para encarar o caminho que tinha percorrido até ali, Thomi estava certo eu tinha que fazer alguma coisa pois se dez não iriam acreditar em mim dois acreditariam. Subi no pequeno palanque que se estendia no meio da vila e gritei pela atenção de todos
—Por favor preciso que prestem a atenção no que irei dizer-disse o mais alto que conseguia, a minha garganta ardia com o esforço
—Desce daí pirralha-o cobrador de impostos gritou
—Não posso-suspirei-agora a pouco eu tive um sonho...
—Não nos diga que a fada dos dentes apareceu-zombaram
—Foi uma, previsão-continuei, ignorando o quanto podia os comentários
—A garotinha percebeu que está com o tempo fechado?-gargalharam
—Thomi-disse baixinho, Thomi pousou em meio a multidão que se dispersou assustada
—Ouçam as suas palavras e agradecerão por minha senhora estar avisando-os
—Agradecida Thomi-sorri para ele que baixou a cabeça-vocês precisam se proteger do jeito que puderem
—Você poderia explicar melhor?-engoli o máximo de ar que consegui para não perder a coragem
—Sei que todos aqui tem poderes que denominam como dom, eu... posso saber das coisas antes mesmo que aconteçam
—Pode pular o discurso e dizer o importante?-pediram
—Arcate vai amaldiçoar a vila-todos começaram a balbuciar ao mesmo tempo, eu me esforçava para entender o que eles diziam
—Por que Arcate faria isso? Não fizemos nada para ela-um gigante questionou, sua voz se sobrepondo a de todos
—Nenhum ser tem notícias dela a séculos-uma ninfa acrescentou-não temos nem como saber se Arcate ainda respira
—Eu sei, tudo que soube a seu respeitoamento foi através de histórias, mas isso não é o mais importante afinal. Temos que nos proteger, o Mestre pode nos ajudar com isso
—O Mestre já é um ancião, não tem como nos ajudar
—O que será de nós agora?
—Quando isso irá acontecer minha jovem?-uma fada da elite abriu espaço entre os outros
—Eu não sei-gaguejei
—E como pode sair pela vila espalhando notícias imprecisas a respeito do destino?
—Eu previ
—Tenha certeza dos fatos para depois assustar a vila inteira, uma jovem da sua idade não sabe ter poderes assim, tome cuidado, as masmorras anseiam por crianças desobedientes
—Ele tem razão, ela está nos enganando-alguém gritou e vaias se seguiram
—Ouçam todos-Thomi se levantou-sortudos serão aqueles que se protegerem e tristes serão aqueles que ignorarem as palavras que estão sendo ditas hoje-Thomi parou perto de mim e se abaixou para eu subir-a praga a de acontecer e todos estão avisados

Observei os rostos amedrontados diminuirem e ficarem borrados pelas nuvens, eu não tinha aquela sensação de dever cumprido, apesar de te-los alertado eu não me sentia bem, o mau presságio não abandonava a minha mente
—Para onde minha senhora?
—Me leve ao Portal Humano
—Mas minha senhora sua mãe não permitiria
—Ela não precisa ter conhecimento da nossa viagem-suspirei e acariciei suas penas-preciso de um tempo sozinha Thomi, nós dois sabemos que nenhuma criatura vai lá
—Mas tem os Golem que protegem o portal
—Agradeço a preocupação Thomi porém...
—Reconheço quando perco uma batalha Merlin-sorri com a menção ao meu nome
—Esse é o seu ponto forte Thomi

A floresta estava silenciosa por causa da noite que se aproximava, o vento estava gélido já que ali as fadas da natureza não vigiavam e nem protegiam, um feitiço foi posto para que nenhum humano sobrevivesse a baixa temperatura, nós tínhamos um reino a ser protegido, nós tínhamos um segredo a esconder e humano algum saberia dele.
   Me aproximei das enormes árvores que se contorciam juntas em forma de um ¤, elas se erguiam únicas em um campo que não havia nenhuma outra árvore além delas como uma ilha no meio do mar, flores silvestres de todas as cores imagináveis nasciam em volta delas, pequenas gemas pendiam dos galhos como frutas maduras prontas para serem colhidas e musgo cobria os troncos fora de lugar, aqueles que se negavam a fazer parte do portal, minha mãe dizia que era na verdade humanos que conseguiam atravessar e tentavam arrancar os troncos para levar a sua espécie entretanto os golem se levantavam e os cobriam como parte de si.
   Eu pude sentir a mágica que exalava da transparência que só nós víamos, o portal era na verdade como um espelho que podíamos ver através mas que os humanos não enxergavam por sua descrença na magia
Merlin?-o garoto de cabelos pretos como o breu, pele branca como as nuvens e olhos da cor do sol me encarou do outro lado
Peter-um sorriso se formou em seus lábios
—Cheguei a pensar que você não viria hoje-nos sentamos no chão, sincronizados, a falta de luz dificultava a minha visão
—Talvez eu não viesse mesmo-fiz círculos com o dedo no chão
—Por qual motivo?
—Tive um sonho-fiz careta mesmo sabendo que ele não me enxergava tão bem assim
—Um pesadelo?
—Uma previsão
—E o que ela mostrava?-a sua confiança em mim me aliviou
—A Arcate... aquela bruxa lembra?-ele assentiu-por onde ela passava ficava cinza e os sorrisos antes nos rostos dos camponeses viravam-se para baixo, eles se arrastavam atrás dela. Mortos. Para sempre, a medida que o caminho era percorrido seu rosto ficava mais jovem, ela ficava mais forte
—Já pensou em oque fazer?-eu temia aquela pergunta
—Já fiz o possível Peter-estremeci-agora só posso proteger minha família e meus amigos
—Merlin-ele disse depois de um tempo
—Oi Peter-espremi os olhos para enxerga-lo
—Eu vou embora.
—E quando voltará?
—Nunca-disse suavemente, a palavra saiu como o bater de asas de borboletas mas me acertou como mil raios
—Nunca? Como nunca?-as perguntas saiam emboladas já que o choro estava entalado em minha garganta
—Vou para o Estados Unidos-percebi que sua voz também saia com dificuldade. De repente começou a ventar forte dos dois lados, os galhos se rebelavam em uma dança mau ensaiada-meus pais compraram uma casa nova lá, viajo hoje
—Você não pode ir-eu não me importava se estava sendo ridícula, deixei as lágrimas rolarem pela face e chegarem a boca-você é meu amigo
—Eu não tenho escolha Lin, não posso ficar aqui com você-senti os raios se formando no céu, explodindo um atrás do outro
—Sim você pode-ele segurou minha mão através do portal
—Lin não se machuque querendo acreditar em algo que não é possível
—Não, não, não-balancei a cabeça e Bum! Outro raio explodia
—Olhe pra mim-olhei em seus olhos, mesmo na escuridão as íris amareladas me acalmaram, mas a tempestade não- eu não vou embora, vou estar aqui, sempre.
—Você não estará aqui Peter, não mente pra mim-larguei a sua mão porém ele não desistiu, Peter atravessou o portal e colocou meu rosto nas suas mãos, meus cabelos eram bagunçados pelo vento
—Sempre vou estar aqui Merlin, você só precisa acreditar. Feche os olhos-sem relutar os fechei-o que você vê?
—Nada, eles estão fechados-disse o óbvio
—Não os abra-senti um calor se aproximar
—Peter?
—Sim?-sua voz era como um porto seguro no meio da tempestade
—Estou com medo.
—Pois não fique.

Seus lábios roçaram os meus levemente. A tempestade cessou sem deixar rastros como se nunca tivesse começado, o silêncio se instalou, eu podia até acreditar que era fruto da minha imaginação entretanto não era porque ali toda a imaginação se tornava realidade, todos os sonhos, até os piores, se concretizavam, seu toque se tornou tão tranquilizador que por um milésimo de segundo consegui esquecer as coisas que estavam em jogo. Peter pôs a mão em minha nuca temendo que eu me afastasse mas porque diabos eu faria aquilo? Sei que com 15 anos nós não sabemos de quase nada porém eu sabia o suficiente, sabia que sentiria a sua falta assim que sua sombra desaparecesse do outro lado.
   Então quando nos separamos a única lembrança que Peter me deixou foi um cordão com uma lápis lazuli.

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