"Olhos de louco" Foi a primeira coisa que meu pai disse "Eu não quero minha filha com olhos de louco" Segundo a história contada por minha mãe essa foi primeira frase dita por meu pai antes de nos abandonar.
Eu tinha sete anos, minha irmã tinha seis, morávamos tão perto da grande Londres, até que Lily saiu de casa sem companhia, mamãe havia deixado a porta aberta, os carros da rua, lembro-me de ter visto luz, de ter ouvido o grito da minha mãe e a vizinha que conversavam na porta, lembro-me de ter inutilmente esticado o braço para segurá-la. Tarde demais.
Lily teve um acidente cerebral causado com o impacto de sua cabeça no chão depois de ter sido arremessada à frente do carro.
Depois de ter feito tomografia o médico disse que talvez Lily se tornasse uma pessoa diferente, ela ficou adormecida por quase uma semana, mamãe gastando quase todo seu salário pra mantê-la no hospital, Lily poderia acordar sem memória, ou com outra personalidade, poderia ver coisas que não estavam ali, sua habilidade de distinguir o real do imaginário fora afetada.
Meu pai disse que não poderia viver com isso, não queria ver sua filha insana quando ela acordasse, esse foi o dia que meu pai fez as malas e fugiu com o nosso carro, foi o mesmo dia que minha mãe tirou a última nota da poupança para pagar os exames da Lily, foi nesse dia que mamãe cogitou a ideia de morar com a vovó. Foi nesse, no quinto dia, que eu revi a Lily pela primeira vez desde que ela fora internada.
Ela estava deitava, com camisola hospitalar azul claro, cabeça raspada, pontos que costuraram seu crânio ainda estavam visíveis, senti um frio na barriga, me aproximei devagar, não sabia que Lily iria encontrar, então mesmo ainda sendo uma criança me senti grande ao enfrentar aquilo.
Estiquei o braço e disse:
⁃ Oi. Eu sou o Mike.
Lily se sentou me olhou com uma cara estranha, viu meu braço estirado, olhou para mim como se perguntasse se era mesmo necessário apertar minha mão. Então ela sorriu, o maior sorriso de todos, seus olhos ficaram espremidos.
⁃ Eu sei quem é você, bobinho.
Sorri também, respirando finalmente, aliviado, ainda era a minha irmã, era a mesma que eu me lembrava, a mesma que eu nunca esqueceria.
Lembranças, eu tenho a mania de me apegar a elas. No momento, me apago a triste lembrança de que devo levantar junto com o sol, antes que o despertador, que ganhei de natal, toque. Tenho que levantar antes que uma fila comece a se formar na porta do banheiro. Tenho que acordar a Lily. Tenho que fazer muitas coisas.
Abro os olhos lentamente, me viro debaixo da coberta, deixo a luz invadir-me, olho para o quarto, o mesmo papel de parede desde que me lembro, forrando o retângulo minúsculo em que passo as noites.
Tem uma janela de madeira, com quadrados de vidro fosco, ela fica de frente pra porta do quarto, ao lado da cama, minha cama que mal cabe a mim e que lembro-me de ter dividido com a Lily quando ela tinha pesadelos.
Um pequeno criado mudo, com duas gavetas, nelas, parte das minhas roupas, sobre o criado, um despertador de corda branco, e alguns livros e um abajur.
No pé da cama, melhor dizendo, ao lado dela, fica uma mesa de madeira, com mais livros, e alguns materiais do colégio. Descubro-me, e sento na cama, estou com camisa e bermuda branca, presentes que ganhei da vovó no meu aniversario.
Sinto o chão frio de madeira na sola dos meus pés, quando me levanto meus joelhos se dobram e eu caio, o barulho do meu corpo indo a encontro ao chão ecoa pela casa, tenho esperanças de não ter acordado ninguém.
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O Mundo do quarto de baixo
Mystery / ThrillerMike vive com a irmã, a avó, e a mãe numa casa numa fazenda no interior da Inglaterra. Seu pai deixou sua a mãe assim que recebeu a notícia de que sua filha, Lily, teria alguma deficiência mental. Sem dinheiro pra pagar uma casa na cidade Sarah Stan...