Prólogo

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Arcadia fora o nome utilizado para nomear um país imaginário construído por poetas e artistas, da época do Renascimento. Descrito como lugar onde a felicidade paira sobre todos, onde as pessoas vivem de forma simples e onde os habitantes mantém uma vida sem se corromper pela ambição, pelo orgulho e pelo desejo exacerbado. Romantizado entre muitos, foi visto como sinônimo de utopia, baseado em conceitos da Idade de Ouro.

Talvez, essa, seja a premissa perfeita para definir Arcadia, a pequena cidade, de um pouco mais de dez mil habitantes, no meio de Idaho. Rodeada por uma floresta alta e localizada no centro de um vale, a cidade foi esquecida no meio da expansão territorial de 1890 e tem sua população baseada em histórias de exploradores brancos que chegaram à região e tornaram aquilo uma comunidade, reconhecida, realmente, como cidade, em 1922. Não passa de mais uma cidadezinha, sabe? Daquelas que não tem uma história invejável ou memorável, sem feriados em prol, sem figuras importantes, daquelas descritas como "onde Judas perdeu as botas", aliás, esse ditado ultrapassado seria algo típico que sairia da boca de algum dos seus habitantes. Não que seja um preconceito, não tome a descrição desse local como ofensa a qualquer outro local perdido em meio a florestas, mas, em Arcadia, as coisas, aparentemente, diminuem a velocidade e quase nada acontece. O hospital não abriga ninguém, até os idosos que, em grandes cidades, são abandonados em seu leito de morte, aqui, são levados para casa e cuidados pelos próprios parentes. Todo mundo conhece todo mundo, todos falam sobre todos, a vida privada é quase uma mentira.

Como descrever esse lugar? Ele é, simplesmente, perfeito. Claro, se você gosta de invernos rigorosos, verões infernais, população baseada em princípios cristãos tradicionais e tédio arrebatador. Caso uma dessas coisas não esteja na sua lista de prioridades para a procura de uma nova cidade para morar, passe para a próxima da lista.

Às vezes, torna-se questionável se as pessoas daqui, ao menos, sabem correr ou gritar. Tudo é tão silencioso, tão quieto, e concentrado em um ponto tão pequeno, que pode-se duvidar de tudo. O maior agito da cidadela fica por conta dos Arcadia Bears e seus jogos semanais com os times das cidades vizinhas que os nomeiam como "os caipiras".

Arcadia é formada, em grande parte, por esse estereótipo de "cidadão de bem", que porta uma arma no cinto, uma bíblia debaixo do braço e, vez ou outra, uma garrafa de cerveja na mão. Com isso, ele é a pessoa mais segura do mundo. A arma resolve seus problemas, a bíblia justifica suas resoluções e a cerveja o conforta sobre seu caráter duvidoso. Não quer dizer que seja uma cidade sem leis, mas é, quase, uma daquelas cidades que funciona à base de xerifes e magnatas, guiados por seus ideais individualistas. É complicado descrever, toda uma cidade, baseado em estereótipos, mas Arcadia, simplesmente, não foge muito disso.

Claro, claro, entre os jovens, com todas as informações tão globalizadas e seus celulares sempre ligados, uma nova geração começava a aparecer, mas ainda era algo muito insignificante, perto de todo o contexto.

Clara e Timothy cresceram na cidade, porém, desde o ano passado, ela tem notado o amigo distante demais. Por vezes, ele, simplesmente, desaparecia numa sexta-feira à noite e só voltada na segunda, pela manhã. Ela estava ocupada demais, se preparando para seu último ano naquela cidade, sempre considerou se mudar para Sacramento, na Califórnia, bem longe de todo aquele "monte de lixo", que é como ela descreve a cidade. Sendo assim, então, ela deixava que o amigo resolvesse seus próprios problemas, deixando sempre claro que estava ali, caso ele precisasse de algo, mas, pela primeira vez, em quase dezoito anos de amizade, eles estavam cada um por si.

Novembro é o mês em que o inverno começa a apertar, é a época em que as botas são tiradas do fundo do armário, as jaquetas aumentam, cada vez mais, de quantidade e espessura. É o momento em que as pessoas se preparam para uma série de festas consecutivas, com desculpas esfarrapadas baseadas em religião, mas com o foco real em compras, comidas, presentes e bebedeira. Para os adultos, significa folga do trabalho, para os estudantes, significa férias de inverno.

É um dia muito frio. Dia após dia, tem sido considerado "o dia mais frio do ano" e Clara, repentinamente, surge da floresta, pulando para a beira da estrada, e caminhando no acostamento. Ela está ofegante, sua jaqueta está suja de terra e ela esfrega as mãos cobertas e sopra quente deixando que, ao se chocar com aquele ambiente congelante, a respiração torne-se vapor. Ela até tem carro, mas, naquele dia, por algum motivo, caminhava, de volta para casa, à pe. Algo aconteceu, algo imensurável aconteceu e ela se mantém em silêncio, vez ou outra, checando a tela do celular e vendo se chegou alguma mensagem. Protetor de ouvido, luvas, gorro, cachecol. Clara chega em casa e sente que pode se livrar de tudo aquilo, enquanto liga o aquecedor. Ela demonstra um nervosismo fora do normal, esfrega as mãos e anda pela casa, ligando as televisões e o computador, aumentando o volume e checando, mais uma vez, o celular. A televisão da sala está em um canal de desenhos e ela revira o sofá para encontrar o controle remoto. Sem sucesso, ela muda de canal pelo botão da televisão mesmo.

Já está anoitecendo e o tempo fica cada vez pior conforme o sol vai desaparecendo no horizonte. As luzes das casas começam a acender, as crianças que brincam no quintal – ou na rua – são chamadas, pelos pais, para dentro, já que "o jantar está pronto!".

Ela anda de um lado para o outro, tenta se convencer de que o que acabou de acontecer não é verdade e que tudo aquilo vai acabar assim que ela perceber que é um pesadelo, um horrível pesadelo. Ela sobe as escadas para o quarto e se encara no espelho por alguns segundos, repete algo inaudível e fecha os olhos por alguns segundos. O espelho fica bem ao lado da janela e ela observa que o barulho das viaturas começa a surgir de todos os lados. Mais uma vez, ela fecha os olhos e agora repete "isso não é real, isso não é real".

As televisões não mencionam nada de anormal, seguem comentando o jogo dos Steelheads, time de hockey no gelo, um dos símbolos de Idaho. Todos estão mostrando quais as últimas notícias sobre a família de socialites do momento ou qual a nova celebridade que foi flagrada com drogas.

Clara entra para o quarto e se deita na cama, olha para um lado e para o outro, fecha os olhos e tenta descansar, mas não consegue ficar aliviada, algo está consumindo seu coração lentamente e ela sente isso de todas as formas possíveis.

Sentada na cama, encarando o nada, ela escuta a porta abrindo e alguém entrando, chamando por ela. "Clara? Clara! Ah, finalmente você apareceu, vem logo", diz Tim, da porta do quarto.

Arcadia SixOnde histórias criam vida. Descubra agora