Ser diferente é enxergar a beleza onde só há escuridão.
Rodrigo Cézar Limeira
Jennifer demorava para conseguir dormir, um turbilhão de pensamentos, anseios e dúvidas lhe atormentavam quase toda noite. Sempre lia algum livro para acalmar sua mente, porém, muitas vezes os livros traziam novas reflexões e a insônia continuava. Então colocava seus fones e ouvia sua coleção de mp3. O velho Tom Jobim sabia como acalmar a menina. MPB e bossa nova eram um deleite para ela. Leitura e música sempre foram um prazer imenso. Era uma freguesa assídua da biblioteca e de sebos. Muitas vezes ficava desejosa de ter os lançamentos fonográficos e literários, porém, devido sua falta de recursos tinha que se contentar com os clássicos contidos nas bibliotecas e sebos. Este fato lhe trouxe algumas vantagens, pois lhe forçou a ser uma garimpeira de boa música e bons livros. Sua cultura geral era ampla e era difícil um assunto que ela não tivesse um conhecimento considerável para proceder uma boa conversa.O dia da moça começava cedo, pois havia investido praticamente todo seu suado dinheiro para ajudar a bancar os estudos, estudava em colégio público, mas fazia inglês e aulas de reforço particulares. Faltavam ainda dois anos para enfrentar o vestibular, mas por isso era importante se estruturar. Precisava entrar em uma universidade pública, era a única maneira de chegar onde queria. Seis e quinze da manhã ela tinha que se levantar e arrastando seu corpo se preparava para seguir seu destino. "Estudar nesse horário é uma merda, ninguém merece isso." Dizia sempre para as amigas. Sua mãe valorizava o sono e por isso não acordava para lhe fazer o café, entrava no emprego mais tarde e queria a filha com o máximo de independência possível, era o discurso dela. Jennifer não achava ruim, pois odiava o café que a mãe preparava. "O café mais aguado do mundo." Todo dia quando o despertador tocava ela sabia que não podia titubear, tinha que se levantar sem muita enrolação, o sono passaria em alguns minutos, só precisava vencer aquela barreira inicial, sair da cama.
A escola era de muitas formas precárias, mas ela adorava os colegas, principalmente um estranho garoto chamado Lucas. Ela era vizinha do menino cego, moravam na mesma rua, uma casa de frente para outra. Via sempre o menino perambulando pelos corredores, sentia empatia por ele, talvez por ele também ser filho de mãe solteira, mas mais por admirar a força de vontade do garoto. Constantemente observava Lucas saindo para a rua, chegou a ver tombos e a determinação do garoto em se adequar ao mundo dos que veem. De início achou-o esquisito, mas aos poucos, vendo ele na escola, reparou no charme e autenticidade. Agora achava ele lindo.
Jennifer era carismática, formosa, a típica menina que consegue o respeito e carinho de todos, ou da grande maioria, porém, tinha uma timidez especial quando se tratava de garotos. Mesmo adorando aquele ceguinho, nunca teve coragem de puxar assunto com ele, uma vergonha descabida a impedia. Odiava quando outros meninos tentavam ridicularizar o pobre coitado, mas caia de amores quando Lucas não se amedrontava e ignorava-os. O garoto ficava isolado, muitos tinham receio dele, era diferente do normal, não só pela cegueira, mas por tudo que fazia. Suas respostas sempre eram precisas durante as aulas. Quando Jennifer falava para as amigas o quanto achava Lucas bonito, algumas desdenhavam e outras talvez por piedade até concordavam que o garoto tinha seu charme. "Tirando aquele bigodinho, acho que até ficaria com ele." Falavam algumas. Fazia algum tempo que Jennifer percebera que estava apaixonada, nem ligava para o bigode, queria beijar a boca carnuda e acariciar os cabelos despenteados do garoto. Começou admirando as ações, mas agora sua atração era física. "Como e quando isso aconteceu?" Ela mesmo não entendia.
Fazia mais de um ano que havia percebido que Lucas andava saindo de noite, um horário estranho. "O que esse moleque faz esse horário na rua? Que mãe deixa um filho cego sair às onze da noite perambular pelas ruas? Ele sai escondido?" Naquele dia resolveu seguir Lucas. "Seguir um cego não pode ser difícil. Tenho que saber aonde ele vai." Pela janela viu o garoto saindo pelo portão do prédio, vestiu sua jaqueta e foi atrás. Manteve um distância segura. Sabia que ele tinha um bom olfato e talvez pudesse conhecer o cheiro de seu perfume. Após Lucas entrar em uma casa rustica, aparentemente abandonada, sentiu o coração acelerar cheio de dúvidas. Ficou parada em frente o local e por uma fresta da janela pode ver quando Lucas sentou e começou a tocar. Aula de violão noturna? Que coisa estranha. Professor doido. Pensou ela. Não preciso nem falar o quanto sua paixão acendeu ao ouvir o jovem prodígio tocando. Aquilo era surpreendente.
Lucas despediu-se do professor e cambaleante saiu para a calçada. A menina estava próxima, encostada no muro, ao lado da grade metálica da casa. O coração dela retumbava, queria abraçar o menino, pular sobre ele. Lucas lentamente foi andando, batendo seu bastão na grade, tentando se orientar. Quando a "bengala" acertou o que parecia ser uma perna e nenhuma nota soou a apreensão tomou conta dele.
"Mil desculpas, não quis te acertar."
"Lucas é você?"
Ele conhecia aquela voz, agora podia sentir o perfume, o cheiro do shampoo.
"Jennifer?" Perguntou.
Jennifer se aproximou e pegou nas mãos dele. Ela fechou os olhos e começou a entrar no mundo dele. O garoto estava ali inofensivo, fácil para uma loba abater. Quando as bocas se tocaram, Lucas teve um vislumbre do que poderia ser a luz. O beijo, os toques, os pensamentos, os sons, eram melhores no escuro, Jennifer não tinha mais dúvidas. Só a cidade presenciou aquele beijo, um encontro feito de luz e escuridão.
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Luz e Escuridão
مغامرة[INCLUINDO A CRÔNICA VENCEDORA DO CONCURSO AVENTURABR - Luz e Escuridão] Um livro de contos onde aventura e romance andam de mão dadas. Diversos gêneros literários se fundem em cada conto no intuito de traçar histórias cheias de reflexão, romantismo...