Os gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo. Nele se revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e da cultura dos nobres (agathoí). Homero acentua que toda a educação tem o seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das qualidades próprias dos senhores e dos heróis. Em Hesíodo revela-se a segunda fonte da cultura: o valor do trabalho. O título de Os trabalhos e os dias, dado pela posteridade ao poema rústico didático de Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre cavaleiros nobres e os seus adversários; também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos da natureza tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidade de valor eterno para a formação do homem. Não foi em vão que Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial, em Homero, não deve induzir-nos em erro: A Grécia exige de seus habitantes uma vida de trabalho. Heródoto, em sua História, VII, 102, escreveu: A Grécia foi sempre um país pobre, mas baseia nisso a sua Areté. Alcança-a pelo engenho e pela submissão a uma lei austera. É por ela que a Hélade se defende da pobreza e da servidão.
Graças às descrições de Hesíodo, podemos ver com clareza a situação do campo no seu tempo. Embora não se possa, num povo tão multiforme como o grego, generalizar a partir da situação da Beócia, as condições desta são, em grande medida, típicas. Os detentores do poder e da formação são os nobres terratenentes (latifundiários), mas os camponeses não deixam de ter uma independência espiritual e jurídica considerável. Não existe a escravatura e nada indica, mesmo remotamente, que aqueles camponeses e pastores que viviam do trabalho das suas mãos descendessem de um povo subjugado, como acontecia na Lacônia.
O pequeno latifundiário de Ascra, na Beócia, "aldeia maldita", situada ao pé do Monte Hélicon, "má no inverno, dura no verão, jamais agradável" (Trab. e os dias, vv. 639-640), aí tinha herdado, com um irmão chamado Perses, a casa e os campos do pai. Este, por sua vez, arruinou-se na embarcação de cabotagem e deixou Cumas, na Eólia, e retornou à sua terra natal. Assim sendo, Hesíodo nasceu em Ascra, na metade do século VIII a.C.
Certa vez, quando ele apascentava os rebanhos paternos, sua vocação poética despertou-se perto do santuário das Musas Heliconianas: ele escutou a voz das Musas, como ele próprio narra no proêmio da Teogonia; ele as invoca no início dos Trabalhos e os dias, o que lhe confere a verdadeira autoria desses dois poemas. Suas origens pastoris aludem ao profeta Amós; a misoginia que Hesíodo expressa quando fala da fatal Pandora o aproxima de Oséias. A maneira como ele apresenta sua vocação de rapsodo (aedo, poeta-cantor) no início da Teogonia se assemelha aos profetas de Israel.
Os dissabores domésticos se expressam nos Trabalhos e os dias: a contenda com seu irmão Perses, que havia recebido parte maior da herança paterna, subornando os juízes e bajulando os reis de Téspias. A poesia dos Trabalhos é terra-a-terra, real, mais original que a Teogonia. Se este último poema se insere em toda uma tradição teológica e cosmogônica, criando uma escola, o outro poema, os Trabalhos, por intermédio dos Phenómena de Aratos, inspirou as Geórgicas de Virgílio.
Do ponto de vista religioso, as duas obras se completam: a primeira obra é um catálogo completo dos deuses da Grécia; a segunda, uma epopéia rústica, onde se misturam prece e detalhes da vida quotidiana, constituindo um documento dos mais instrutivos sobre a religião popular.
Toda a elaboração poética de Hesíodo se sujeita ao estilo formular de Homero, às suas formas estilizadas, o que era característico da poesia oral. Encontramos versos inteiros, fragmentos, palavras e frases homéricas. O uso de epítetos épicos pertence também à linguagem de Homero. Disso resulta um notável contraste entre forma e conteúdo nas obras hesiódicas. Os poemas de Hesíodo nos permitem conhecer o tesouro espiritual que os camponeses beócios possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa das sagas da Teogonia encontramos muitos temas antiqüíssimos que não aprecem em Homero. Na Teogonia, Hesíodo se expressa mais como pensador construtivo, enquanto nos Erga está mais próximo da realidade e da vida do campo. Mas também quebra sem hesitar o fio do seu pensamento para contar longos mitos, na certeza de agradar aos ouvintes, pois para o povo, os mitos eram assuntos de interesse geral e irrestrito, de reflexões, e constituíam toda a filosofia daquela gente. Os temas preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida realista e pessimista daquela classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem: o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da vida humana; a narração das cinco idades do mundo, que explica a enorme distância entre a sua própria existência e o mundo resplandecente e opulento de Homero, reflete a eterna nostalgia do homem por melhores tempos. O mito de Pandora expressa a concepção triste e prosaica da mulher como fonte de todos os males. Não foi Hesíodo o primeiro a popularizar essas histórias entre os camponeses, mas, com certeza, foi o primeiro a situá-las num contexto social e filosófico com que aparecem em seus poemas.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Hesíodo e a condição humana
EspiritualUma breve reflexão filosófica sobre a condição humana. De que maneira os antigos gregos interpretavam nossa existência? Hesíodo afirma ter recebido as revelações das musas no monte Hélicon e transmitiu sua mensagem ao povo grego que buscava ansiosa...