Sempre o mesmo sonho. E a mesma sensação de que corri meia maratona sob um temporal. Meus cabelos espalhados sobre o travesseiro, carregados por uma estática quase visível. Meu pijama ridiculamente infantil ensopado pelo meu suor. Era desconfortável, era extremamente real.
Saí da cama, as portas francesas batiam ruidosamente, provavelmente o motivo pelo qual despertei. O único problema naquele momento-além do sonho extremamente incômodo e contínuo, é claro- era que eu me lembrava exatamente como havia fechado aquelas mesmas portas horas antes.
Então, algo ali me chamou a atenção... Não se tratava apenas do meu cabelo eletrizado. Todo o ar possuía uma estranha eletricidade que reproduzia faíscas no céu escuro, sem lua, sem nuvens, sem estrelas.
O piano começou a ressonar no andar inferior. Eu imediatamente soube que meu pesadelo começava naquele momento. Eu possuía quatro alternativas de acordo com minhas análises de filmes de terror e minhas experiências com a vida e provas de múltipla escolha: A) voltar para a cama e esperar que, o que quer que fosse, aparecesse. B) Tentar fugir pela sacada e encarar a morte iminente. C) Fingir coragem e descer até o andar inferior e encarar o monstro frente a frente. D)Aceitar que tudo tão passava de um mesmo medo, derivado de um mesmo sonho, repetido noite após noite.
Obviamente, como em todos as histórias já vistas, eu iria naturalmente ao encontro do monstro. Provavelmente gritaria ao pé da escada "quem está aí?" como se meu -não adorável- companheiro fosse responder com um simples "querida, estou aqui! Deseja leite quente e uma fatia de bolo de laranja para que possa curar sua insônia?". Isso soaria um tanto sentimental e não haveria um monstro sequer com proximidade emocional a mim se eu fosse esperta o bastante, certo? Eu poderia ter muitas incertezas, mas jamais duvidaria de minha própria sagacidade.
Eu poderia abandonar minhas paranoias. Poderia bater à porta do quarto dos meus pais e dizer que tivera um pesadelo e não conseguia dormir, como quando era pequena. Poderia procurar por outro alguém confiável, que por incrível coincidência também estivesse acordado àquela hora da madrugada.
E eu escolhi descer. Sanar meus medos. Não havia com o que se preocupar. O sobrenatural não existia e nós simplesmente possuíamos segurança demais para que alguém estranho pudesse adentrar a casa.
Degrau por degrau, meu robe de seda violeta arrastando-se pelo mármore polido como uma bela cena cinematográfica. A música atingia seu auge e meu coração disparava juntamente com ela. Prendi a respiração e esperei pelo pior. Havia uma leve luminosidade vindo da sala do piano, como luz de velas. E então meu coração aquietou-se rapidamente.
-Hugo?
Ele sorriu. Uma fileira perfeita de dentes brancos de nascença- privilégio que eu nunca possuí. O cabelo escuro, levemente despenteado pela noite também insone. Os olhos tempestuosos-que eu sempre sonhara ter- brilharam. Os melhores traços, a profundidade certa de seu olhar que o tornava expressivo, enquanto o meu sempre se apresentava sem vida.
-Olá, irmãzinha... Surpresa?- Eu sabia que a expressão em meu rosto era de um alívio quase tangível. Não eram os mesmos sonhos. Mas isso não impedia que meu coração se acelerasse.
Não havia monstro algum. Não havia problemas, exceto por um... Eu nunca tivera um irmão.
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Solstício
HorrorEm meio ao seu paraíso dourado, Liz não imagina que seu reino está prestes a ruir frente aos seus maiores temores. Em contraposição, sua outra metade, Nina, nunca esteve tão próxima de encontrar as maiores glórias de seus dias mesmo após a tragédia...